HORS CONCOURS – PROSA ESTUDANTIL – CONTO – E.E. IRACEMA DE ALMEIDA – VI Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"
Allan
Lauana Aparecida de Araújo Carvalho
Delirium Tremens, minha cabeça relembra, enquanto sentado em um bar escuro cercado de três homens, me pego repassando a morte de Allan.
— Diga de uma vez D., como Allan morreu? — Um dos homens suplicou, enquanto levava mais um copo de bebida aos lábios.
Dez anos após a morte de Allan e as pessoas continuam especular sobre isso. Às vezes desejo nunca ter ido atrás da verdade.
Suspiro de forma contida, encarando os que estavam na minha frente. A tensão era palpável.
“Viajei para Baltimore, pouco depois que descobri que Allan estava morto. Não consigo me lembrar do clima, ou de quantas pessoas havia no trem, sequer me preocupei com o jornal da manhã.
Minha cabeça estava confusa, lembro-me vagamente que ela doía em uma sensação desesperadora. Desembarquei na ferrovia e segui o caminho que me indicaram até onde ele foi encontrado.
Era um local precário, imundo. Um canto qualquer de ruela, onde bêbados e arruaceiros são encontrados. Não onde ele deveria ter sido encontrado. Certamente não.
Não posso acreditar que um homem que sequer concebia a ideia de outra pessoa pudesse ser superior a ele, pudesse acabar dessa forma. Talvez essa tenha sido a última tentativa do universo de lembrá-lo que no fim, todos somos insignificantes por sua própria natureza, não que acredite que Allan tenha escutado. Ele sempre foi teimoso demais.
Até mesmo para seu próprio bem.”
— Não está insinuando que Allan realmente tenha dormido com uma mulher comprometida, ou está, Sr. D? — perguntou-me um homem baixo, com dentes amarelados pelo fumo constante, que sob um sorriso malicioso se referia as especulações que houve na época.
— Não, eu não estou — aproveitei a pausa forçada de minha narrativa para tomar um gole da bebida. Seu amargor me lembrando de que aquela poderia ser uma das causas da morte de Allan, uma causa que ousaria dizer, mais digna do que acreditava que a verdade fosse.
Percebi que me encaravam, talvez ainda mais ansiosos do que no início, afinal, uma vez que a história é iniciada ela precisa de um final. Independente de qual seja ele.
“Pouco depois segui para uma hospedagem, não muito longe de toda a comoção. Era irônico, Allan morreu na mesma cidade onde trabalhou por um tempo.
A hospedagem era precária, mas não me faltava nada de essencial, talvez até mais se levasse em conta uma senhora fofoqueira que se hospedava a dois quartos do meu. Ela foi de grande ajuda.
Mulheres, no geral, podem ser muito úteis, embora Allan nunca tenha conseguido ter essa percepção
acerca delas. Acho que isso ficou bem claro em seus textos.”
— Como poderia sendo órfão? — Escutei um dos três dizer, sem me preocupar em descobrir quem era.
— Verdade seja dita, Allan nunca foi um homem normal — falou um homem que eu sabia ser do baixo escalão do governo, entre os três o mais sóbrio. Era perceptível por seu cabelo, ainda, perfeitamente arrumado e a postura ereta, mesmo sob bancos desconfortáveis — Me desculpe Sr. D. — se dirigiu a mim com um menear de cabeça, que retribui meio a contragosto, no fundo, eu sabia que era verdade. Allan era um gênio, palavras como “normal”, nunca poderiam ser usadas para descrevê-lo — Mas depois que aquela moça morreu, sua esposa, quero dizer, isso... isso o destruiu. Principalmente, eu diria, por ela ter morrido da mesma forma que a mãe dele morreu.
— Todos sabem que ele não dava a mínima para ela — discordou o primeiro homem, dessa vez procurando um de seus tão famosos charutos — Seria uma surpresa se ele algum dia tivesse se preocupado em no mínimo tocá-la, eles nem tiveram filhos no fim das contas. Escutem o que eu digo, ele era louco, insano. Só se importava com a porcaria de seus intermináveis textos.
— Não sabe do que fala — Sussurrei, minha calma esvaindo de meus poros. Um aviso silencioso que esse era o momento para parar de beber.
Ele sorriu em deboche.
— Eu li as cartas que ele escreveu — Falou devagar, enquanto batia a ponta do charuto na mesa, derrubando algumas cinzas — Não me espantaria se ele mesmo tiver se matado.
— Chega, Prettew. — Um dos homens alertou. Seria melhor se eu segue em frente, então o fiz.
“Em menos de um dia na cidade, visitei o hospital para onde ele foi levado. Descobri coisas interessantes.
Não apenas Allan estava em um estado de quase inconsciência, como ele estava delirando durante todos os quatro dias que ainda esteve vivo. Clamando a Deus e chamando por alguém que nunca ouvi falar. Ignorei o fato, naquele momento, procurando pela pessoa, que me informaram, tê-lo encontrado. Não consegui muita coisa dele, como esperado.
Era um homem comum, de aparência comum e vida comum. O mais perturbador que seu relato chegou, foi sua declaração final em relação a Allan.
‘Aparência repulsiva — estava sujo, com os cabelos bagunçados, roupas gastas que sequer eram do tamanho certo, e por último, tinha os olhos vazios e sem vida’
Percebi o quão estranho isso soava.
Allan sempre usava seu famoso terno preto de risca. Ele não era do feitio de andar desleixado. A cada momento, aquela história me parecia mais absurda.”
Suspirei novamente, esfregando a ponte entre meus olhos. Olhei pela janela, apenas para perceber que a chuva havia acabado.
“Tentei ao meu máximo refazer os passos de Allan. Não foi fácil no começo.
Em seus dias na cidade, Allan havia conseguido se tornar uma espécie de fantasma, um que poderia ser facilmente retirado de suas histórias. Um ser invisível, que antes de sua morte prematura, não parecia ter causado mal algum.
Dias depois do início de minha amadora investigação, uma vez que me recusei a me juntar a polícia, descobri por meio da minha ‘vizinha’, se assim posso chamá-la, que perto da data que Allan morreu uma comoção foi causada em um bar próximo de onde eu estava e mais próximo ainda do local onde ele havia sido encontrado.
Esperava, honestamente, não encontrar nada. Mesmo sabendo que Allan possuía um histórico para bebida. Me ressenti quando descobri que ele de fato esteve lá. Sentado em uma mesa de canto durante três dias, com seu inconfundível terno preto, sua postura arrogante, tudo que lembra ele.”
— Então Allan bebeu até morrer? — Me perguntou o mais jovem, quase que empoleirado na cadeira, ignorando seus colegas bêbados do lado.
— Ironicamente, não. Allan não bebeu nem um único copo, não antes da terceira noite pelo menos. Ele me encarou confuso, esperando explicações.
“Allan foi durante três noites até aquele mesmo bar. Sentou-se na mesma mesa e conversou com a mesma mulher, todas as duas primeiras noites. Mas tudo mudou na terceira.
Allan estava lá, sentado, com um copo de bebida à sua frente, imagino eu, encarando-o até que ele bebeu. Bebeu um copo e meio, antes de um homem chegar e arrastá-lo para fora.
Imagino que foi a partir daí que surgiu o boato de ele dormia com uma mulher comprometida.”
— Você não acabou de favorecer essa teoria? — Um dos três perguntou.
— Acha mesmo que Allan dormiria com uma mulher comprometida? — devolvi a pergunta.
— Por que não?
— Não acho que Allan quisesse voltar a se envolver romanticamente com qualquer outra mulher em sua vida.
— Mas ele estava noivo antes de desaparecer — Apontou o segundo dos homens.
— Por pura conveniência se me perguntar. O que é mais fácil que se casar com alguém que já foi sua paixão de infância?
— Acha que ele não seria capaz de se apaixonar por alguém?
— Acho que Allan dedicou tempo demais de sua vida reprimindo seus desejos. Não creio que ele se daria o prazer de fazer algo assim.
Olhos profundos me encaram, como se entendessem parcialmente o que eu falava.
— Para merda com o Allan — exclamou o primeiro — Os médicos avisaram que ele não deveria voltar a beber.
“Nunca encontrei a mulher, mas encontrei o homem. Reynolds, o mesmo que Allan chamou a beira da morte.”
— Em seu leito de morte Allan chamou por um homem? — estava começando a gostar do rapaz, ele possuía boas perguntas, um senso inquestionável para investigação, mas faltava uma capacidade para sutileza e compreendimento para as entrelinhas.
Ignorei-o.
“O homem, como vim a descobrir depois, não passava de um marinheiro. Um homem bem afeiçoado, obviamente, mas de baixa importância social, mesmo entre seus companheiros.
Percebi quase que imediatamente que as roupas na qual Allan foi encontrado, pertenciam a ele e garanto-lhes, considerei matá-lo com minhas próprias mãos pela morte do meu amigo, mas aprendi por vezes demais, embora para vocês ele não passe de um lunático, com Allan que o silêncio e a paciência são armas muito perigosas.
Dei-lhe a chance de se explicar.
Reynolds me contou sua versão da história.
Embora Allan devesse estar a mais de duzentos quilômetros de onde ele estava, ele procurou por Reynolds naquela cidade e imagine a surpresa do homem quando soube, afinal, ele mesmo havia acabado de retornar.
Procurou primeiro pela mulher que diziam que ele estava comprometido, mas pelo que sei, depois dos eventos de três de outubro, nunca chegaram a se casar.
A mulher, obviamente, ficou surpresa com a procura e de certa forma indignada com a sugestão de local de encontro. Ela queria saber o que Allan queria com seu noivo e esse teimosamente como apenas ele pode ser, se recusou a falar, dizendo apenas que eram assuntos urgentes.”
— E que assunto ele poderia ter com um marinheiro? — Zombou o primeiro, pelas minhas contas, já na metade de seu segundo charuto.
— Eu não tenho a menor ideia — Menti tão descaradamente quanto os anos me ensinaram a fazer.
“Como disse, eles tornaram a se ver durante duas noites e pelas reações que me disseram que Allan teve, ele não conseguiu o que queria e sequer parecia ter esperanças de encontrar Reynolds na terceira noite.
Reynolds me secretou que minhas ressalvas estavam certas, antes que chegasse Allan havia bebido um copo e quando chegou tentou beber mais um, antes que o arrastasse para fora de lá, mas as coisas não acabaram por aí.
Eles seguiram durante um tempo, até onde eu mesmo me encontrei com Reynolds, sua casa. Um local tão modesto quanto seu dono e ali, sentados em cadeiras tortas de mesas desproporcionais, conversaram de fato e a conversa levou a discussões”
— Que discussões? — Perguntou o terceiro, pela primeira vez, parecendo interessado no assunto.
— Quem sabe? — dei de ombros.
“Quando as coisas acalmaram um pouco, pelo menos por parte de Reynolds, Allan saiu da casa transtornado, em uma mistura perigosa de álcool, raiva e restos da dosagem alta de seu remédio. Cambaleou até aquela sarjeta, onde caiu semiconsciente, até que o encontraram no dia seguinte.” Terminei minha breve narrativa em um suspiro.
— Mas isso não explica nada — Exclamou o primeiro ensandecido por ter perdido seu tempo
— Nem as roupas ou a causa da morte, sequer o motivo de ele estar onde não deveria estar.
— Não, não explica — concordei, tentando beber um gole da minha cerveja que a essa altura já estava quente demais para consumo — mas infelizmente cavalheiros, o mundo não para, nem mesmo para os mortos — falei a última parte enquanto pensava em Allan.
Juntei minhas coisas, não me esquecendo do sobretudo e me certificando de deixar dinheiro para bebida e abandonei a mesa onde me encaram em uma mistura de confusão, ódio e, talvez seja uma pura fantasia minha, uma vez que me apeguei ao garoto, divertimento e sai para o frio da noite, um vento agradável contra o corpo.
— Senhor D., espera — Escutei o garoto gritar.
— Pois não?
— O senhor não contou tudo, não é? — Ele falou ofegante pela corrida que deu para me alcançar. — Digo, está claro que o senhor sabe bem mais do que contou. Dei um breve sorriso. Rapaz esperto.
— Sabe quais foram as últimas palavras do meu amigo?
— Como poderia?
— Justo — Lancei-lhe um olhar entretido — “Lord, help my poor soul” — recitei as palavras que escutei da boca dos médicos — Vou te dizer uma coisa, garoto, o mundo está melhor sem saber toda a verdade. É o que Allan gostaria.
— Acha isso?
— Gostaria de acreditar que sim — suspirei — Sabe, você é inteligente, poderia ter um futuro promissor como detetive.
— Obrigado, senhor.
— Me chame de Dustin — Ele sorriu e eu retribui, deixando-o sozinho para pensar, seguindo novamente meu rumo para casa.
Em minha cabeça ainda tremeluziam aquelas palavras — “Eu cometi um erro terrível. Eu e Allan...” —, ouvi Reynolds dizer diversas vezes durante nossa conversa, não era preciso mais palavras a objetividade era clara. Tudo estava claro, pelo menos para mim.
É irônico que o homem que me imortalizou em suas obras, também tenha sido o catalisador de minha aposentadoria. Bem, descanse em paz Allan. Espero verdadeiramente que tenha encontrado a paz pela qual clamou em seu último suspiro.
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