4° LUGAR – PROSA NACIONAL – CONTO – VI Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"
Os cheiros dos bárbaros nunca serão iguais aos das auroras
Airton Souza - Marabá/PA
Logo que saía de dentro da casa o velho sempre mantinha os olhos atentos a toda a movimentação. Sem mover um músculo do rosto, conseguia desenrugar, em instantes, toda a boca como se fosse possível, a qualquer momento, abraçar uma centena de desertos. Fora da casa, era possível perceber quão engelhado era o seu corpo. Com o nariz limpinho e pronto para sentir o cheiro de qualquer criança brincando nas ruas, ele imediatamente levantava a cabeça e enrijecia o pescoço até ficar completamente vermelhinho. Antes de escolher para que lado da rua iria, ele neblinava os olhos, na tentativa de deixá-los menos santificados pela compaixão. Enquanto isso, eu permanecia guardado dentro de um dos bolsos de sua calça, sentindo-me cada vez mais agoniado com o fedor de lodo que emergia da sua roupa. Do nada começava a andar.
Quanto mais distâncias o velho do saco alcançava para longe de sua casa, mais eu desejava, assim como tem sido todos esses dias, que nenhum menino ou menina estivesse nas ruas, brincando sozinho. Eu nutria a esperança de que aquele homem pudesse recomeçar sua infância, sem ser necessário prolongar o medo em crianças. Naquele dia, o primeiro gesto que fez quando enxergou, ao longe, duas crianças brincando sozinhas no meio da rua foi me colocar, repentinamente, por baixo de um de seus braços. Senti os pelos daquele lugar ficarem eriçados, quase como se quisessem invernar-me. Meio sarcástico, esfregou as mãos uma na outra, fazendo uns movimentos circulares. Um cheiro estranho, semelhante ao dos pântanos, começou a sair de suas unhas.
Olhei para as crianças sentadas no chão. Elas brincavam distraídas. Ao olhar rapidamente ao redor, fiquei desesperançado porque não enxerguei nenhum adulto por perto. Percebi que era a chance que o homem tanto queria ao longo de todos esses dias. Embora soubesse que era impossível, senti vontade de poder gritar: – Corram! Corram!
Do nada, o velho enrijeceu as carnes de seu corpo. Procurou uma maneira de afastar de si mesmo o que ainda restava de compaixão em suas mãos e, como se tivesse desaprendido a recolher relvas, lentamente diminuiu a força com que me apertava. Voltou a pressionar os dentes uns por cima dos outros, tentando diminuir as rugas de seu rosto. Fiquei ainda mais aflito, sentindo uma infinidade de vírgulas desamparadas germinarem em mim.
A mão desocupada, o velho a passou nos cabelos, tentando deixar bem arrumadinhos os poucos fios esbranquiçados que restavam em sua cabeça. Deu dois beliscões nas próprias bochechas, para elas ficarem vermelhinhas. Estalou a língua
novamente, mas, dessa vez, provocou um som baixinho, quase um ruído. Mantendo a boca completamente fechada, ensaiou um sorriso, principalmente, forçando os lábios para um dos cantos da boca. Depois disso, ele desamanheceu de vez os olhos.
Caminhando sorrateiramente no rumo das crianças, ele começou a me desdobrar mais rapidamente, usando suas mãos ásperas, o que contribuiu para desenhar uma agonia em mim. De soslaio, percebi que a paisagem entre eu, o velho e as crianças foi ficando cada vez mais diminuta. Faltando apenas uns cinco metros para chegarmos pertinho do menino e da menina, pensei: – Se ao menos eu tivesse aprendido a desalfabetizar o ódio ou a desenhar a piedade no coração dos homens.
Quanto mais se aproximava das crianças, sem elas perceberem, mais o velho abria a minha boca. Repentinamente, o desespero abraçou meu corpo inteiro. Naquele momento, eu seria capaz de sonhar com minúsculos orvalhos entristecendo o coração das libélulas. Dissimulado, ele chegou pertinho do menino e da menina. Antes de me jogar por cima deles, deu uma forte soprada dentro de mim. A lufada de ar de seu bafo sujo de enseadas vazias ocupou o que ainda restara de bosques, petúnias, estrelas, auroras e esperanças em mim. Com um rápido movimento, jogou-me por cima das crianças. Apertou a minha boca até o bafo dele fazer com que o menino e a menina adormecessem. Em seguida, o velho me pôs nas suas costas, sustentando o peso das crianças em seu ombro. Firmou os joelhos. Esfregou os pés no chão. De repente, passou a assoviar baixinho uma canção estranha e, somente depois disso, começou a caminhar impaciente de volta para casa.
Caminhando apressadamente, os poucos fios de cabelo do velho ficaram desgrenhados. Era possível enxergar, em sua cabeça, um horizonte inteirinho de peixes com fome ou a linguagem dormente e com cheiro de escuro no coração das mariposas. Em meio à pressa, vi que, de uma hora para outra, seus olhos ficaram tão fundos, que suas retinas pareciam ter terminado de inaugurar, sem trégua, a palavra indigência.
Ainda distante da nossa casa, eu tive a ideia de ir aos poucos me descosturando e soltando pequenos pedaços de linhas no chão, elaborando um percurso que ia do lugar onde as crianças tinham sido capturadas até nossa casa. Durante todo o caminho, elas permaneceram sonolentas. Todos os vocábulos dentro da boca delas não conseguiam sair. Estavam aturdidas. A poucos metros para chegar à casa, percebi apenas o menino se esforçando para abrir os olhos. Àquela altura, era impossível entender o que aconteceu. Para não machucá-los, mantive-me aberto o máximo que fui capaz.
Alguns metros antes de chegarmos, parei imediatamente de arrancar os pequenos pedaços de linhas. Encolhi meu corpo um pouco para não levantar suspeitas. Senti o dorso do velho suado. Na cabeça, os poucos fios de cabelo tinham formado outra imagem tenebrosa. Com cuidado, fui tentando escurecer menos os espaços dentro de mim, para ver se, assim, as crianças conseguiriam sair imediatamente da sonolência. Naquele momento, eu compreendi que nunca iria conseguir aprender a amar o latifúndio em vez dos crepúsculos ou mesmo ensinar aos escombros a importância do amor e das pedras.
Logo que atravessamos a porta da casa, o velho desenrugou o corpo, começando pelas pernas. Deixou os olhos ainda menos banhados pelos abismos. Sorriu sem abrir a boca. Depois disso, já não seria mais fácil identificar em suas mãos os vazios tristes desenhados nos musgos, nas árvores e nos pássaros. Parou de assoviar. Foi até o único quarto da casa. Tirou as crianças de dentro de mim. Percebi que elas estavam fazendo um grande esforço para acordar. Arrastou-me para fora e, com força, trancou a porta do quarto. Fiquei jogado no chão, pertinho da porta, enquanto o velho começou a andar de um lado para o outro como se tivesse encontrado a receita dos orvalhos sem a delicadeza das árvores. Sem tirar os olhos de onde estava, vi-o jogar as chaves da casa em cima da velha mesa de madeira.
Antes de anoitecer, eu percebi que nasceu, subitamente, por todo o corpo do velho, uma irremediável devoção pelo horror. Ramificaram em suas unhas limos fedendo a betume. Naquele instante, tive certeza de que ele nunca mais saberia pronunciar a palavra ternura ou mesmo equilibrar, entre os próprios dentes, pequenas enseadas. Cresceu, ao redor de seus olhos, a rugosidade das paredes incrustadas de caramujos. Nas mãos, via-se facilmente a ramificação de manhãs escurecidas. Como pronunciar infância, chuva e borboletas sem a vocação para acordar silêncios? Diante dessa pergunta, eu não consegui deixar de sentir remorso. Uma imensa tristeza tomou conta da coisa que eu era, um velho saco, desgastado, incapaz de desenhar minúsculos rios nas mãos dos bárbaros. Jamais imaginei que um dia seria obrigado a fazer maldades, embora eu ainda soubesse enternecer a mim mesmo e invernar com ternura a palavra vingança.
Quando a noite se adensou de vez, o velho dormiu. De onde eu estava, era possível ouvir o som do ronco dele vindo da sala. O barulho se parecia demais com a voz espalhada pelo abandono. Isso fez com que aumentasse em mim a raiva e o desprezo por aquele homem. As crianças, assim que acordaram, começaram a chorar baixinho. Dentro do casebre, tanto o ronco quanto o choro engendraram um imenso medo em mim. No entanto, algumas horas depois, um silêncio abraçou a casa inteira. Sem conseguir dormir,
pus-me a pensar mil coisas. A única certeza que tinha é que não poderia comungar da maldade de ninguém, ainda mais de um velho que compreende mais de pântano do que de ternura. Queria imaginar um plano para evitar o pior. Sabia que o velho, logo que amanhecesse, faria alguma crueldade com as crianças. Isso porque o coração dos bárbaros é feito da incompletude das neblinas. – Eu preciso arrumar um plano para salvar essas crianças. Repeti isso baixinho quase a noite inteira, tentando buscar respostas sobre o que fazer. Quanto mais o tempo passava, mais o desespero abarcava cada fio de meu pequeno corpo. Ao longe, alguns galos começaram a cantar, o que contribuiu para aumentar a angústia em mim. O resto do bafo anoitecido do velho alimentava minha tristeza, e era como se as primaveras não fossem feitas de flores, e, sim, do princípio das pedras. Quase amanhecendo, consegui traçar um plano. Então, com a casa toda mergulhada na penumbra, comecei a me arrastar por cima do piso de cimento rugoso. Vindo não sei de onde, um fedor de lodo impregnou a casa. Sabia que o velho sempre levantava cedinho e que qualquer barulho o acordaria facilmente. Com muito esforço, fiquei em pé. Alcancei as chaves jogadas em cima da mesa. Peguei somente a do cômodo onde as crianças estavam e deixei as outras. Joguei-a por cima de mim e voltei para pertinho da porta do quarto. Guardei a chave embaixo de mim.
Logo nas primeiras horas da manhã, os cômodos da casa foram tomados pelos murmúrios do menino e da menina. Eles pareciam ter acordado com os olhos totalmente entardecidos. O velho ouviu o barulho e acordou bravo. Levantou-se da cadeira. Passou as mãos nos olhos e voltou a andar de um lado a outro dentro da casa, impaciente. O homem, que sabia todos os xingamentos do mundo, passou a gritar por vários minutos diversos nomes horrendos. Em desespero, foi até a porta do quarto e começou a esmurrá
la, esbravejando sem parar: – Calem a boca seus pestinhas. Calem essas bocas, senão eu vou aí dentro e faço cócegas nos dois até vocês sorrirem de dor. Quando o ouvi dizer aquilo, fiquei nervoso. Desejei saber minúsculas rezas para pedir a qualquer santo que acalmasse o coração vazio de nuvens no peito do velho. Mas, logo em seguida, percebi um silêncio voltar a refazer-se dentro dos cômodos da casa.
Assustadas, as duas crianças pararam de murmurar. O que se ouviu em seguida foi o barulho dos pés do homem atravessando calmamente os poucos cômodos da casa, indo para o quintal. Rapidamente, pensei: “É a minha chance”. Com muita dificuldade, fiquei em pé. Tremendo, tentei uma, duas, três, quatro vezes até conseguir colocar a chave dentro da fechadura. Girei-a duas vezes. As crianças falaram algo baixinho, que não foi possível entender. Ouvi o velho voltando do quintal. Agoniado, dobrei a maçaneta.
Joguei-me no chão e de lá mesmo empurrei a porta com força. Um clarão tomou conta do quarto. As crianças ficaram em pé, sem entender o que estava acontecendo. Mas, em seguida, começaram a caminhar vagorosamente em direção à porta. De uma só vez, colocaram parte da cabeça para fora e olharam de soslaio. De imediato, perceberam que o velho não estava dentro da casa. Deram as mãos. Entrelaçaram os dedos. Pularam por cima de mim e correram em direção à rua.
Não tive tempo de tirar a chave da fechadura. Arrastei-me até chegar ao lugar onde o velho tinha me deixado. Encolhi-me. Dois minutos depois, ouvi o homem voltar para dentro de casa. Ao entrar, vindo do quintal, ele enxergou a porta do cômodo onde as crianças estavam escancarada. Correu e, em poucos segundos, entrou no quarto. Furioso, o velho reagiu do jeito que imaginei. Por entre a sombra, enxerguei-o manter o corpo ereto. Deixou os dedos das mãos em riste. Soltou um esturro bem alto, que rapidamente ocupou todos os centímetros da casa. Depois, aproximou-se da porta e deu três fortes pontapés, sem dizer uma única palavra. Cabisbaixo, saiu, às pressas, de dentro do quarto em direção à rua.
Do lado de fora da casa, o velho colocou as mãos por cima dos olhos. Enxergou a imagem das crianças correndo. Elas estavam distante demais da casa. O homem, como se entendesse mais de betumes do que de pássaros, gesticulou os braços de maneira estranha. Rapidamente, deixou a boca escurecer e gritou: – NÃÃÃÃOOOOOOO.
Ofegante, voltou para dentro da casa. As rugas de seu corpo estavam todas avermelhadas. Agoniado, começou a andar de um lado a outro. Pela força de seus pés batendo no chão, compreendi que a partir dali nenhum outono seria capaz de curar o ódio que emergia de seu coração. De repente, o velho furioso me pegou do chão. Posicionou
me entre suas duas mãos. Os seus dedos ásperos faziam doer em mim um silêncio que só as neblinas conhecem. Ali mesmo, começou a me apertar, amassando-me com todo o ódio que tinha dentro de seu coração. Depois, com uma força descomunal, jogou-me em um canto da casa praguejando todas as palavras feias que conhecia. Como não dava mais para ver as crianças correndo, apenas imaginei que, naquele instante, pequenas lufadas de vento pudessem estar acariciando seus pequenos rostos. Os pequenos fios que soltei de mim estavam ajudando-as a encontrar o caminho de volta. Pensei nos olhinhos delas, sem relvas ou musgos. Com vontade de chorar, fechei os meus. Abri braços como quem acende manhãs e infâncias. Mantive a boca fechada, e, enquanto, o velho xingava, murmurei:
– Os cheiros dos bárbaros nunca serão iguais aos das auroras.
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