5° LUGAR – PROSA INTERNACIONAL – CONTO – VI Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 A Última Briga 

António Manuel Raposo Caetano  Maputo - Moçambique

Bairro de Matacuane, manhã de sexta-feira. Julieta acorda cedo para se arrumar para ir à sua labuta. Mais velha de quatro irmãos (três mulheres e um rapaz) órfãos de pai e mãe, e proprietários da casa de cuja parte eu e meu amigo Joaquim (ambos estudantes universitários) somos inquilinos, ela é a única que trabalha, e a principal que coloca pão na mesa, pois o dinheiro de renda das três casas que os pais deixaram só serve para pagar seus estudos. Ela trabalha em um muito prestigiado salão cabeleireiro não muito distante de casa, pelo que quase sempre volta para almoçar. 

Julieta sai apressada, tendo deixado dinheiro para o almoço e algumas recomendações para Quina, a irmã imediatamente mais nova, sobre a refeição do dia e também a necessidade de racionalizar o dinheiro para que o que comprar baste para o jantar. 

— Não é para encherem de novo sal aí, e cuidado com o óleo também — ela adverte, estando já no portão. 

— Sempre a reclamar — resmunga Quina, enquanto varre o quintal. — Se acha que nós não sabemos cozinhar, arranja uma empregada! 

— Mas é justo mesmo o que estás a dizer, Quina? — repreende-a Joaquim, que se encontra ao lado a lavar sua roupa. 

— Ahhh… é que mana Julieta reclama muito. 

— Nunca fazemos nada bem para ela — acrescenta Maida, a caçula, estando sentada à porta a mexer seu celular. — Cansa ouvir uma pessoa a reclamar toda hora. Aqui em casa quase nunca cozinhamos bem. 

— Eu agora nem ligo mais se reclama ou não reclama, só cozinho do meu jeito e pronto — retoma a palavra Quina. 

— Ahhh… é isso aí, eu também. 

— E é assim que agradecem ao esforço que ela faz? — eu questiono. 

— É que também não é assim, mano Beto — fala Maida. — Pessoa nem pode mais tipo falhar encher sal ou óleo, ou fazer papa arroz, já é barulho que não acaba. Até parece que ela também não falha… 

— Só porque é ela que tira mais dinheiro aqui em casa? — reforça Quina. — Nós também tiramos e nem por isso ficamos aí a reclamar à toa.

As duas conseguem algum dinheiro às vezes, à sua maneira. São jovens bonitas (todas as três irmãs) e ali tem sido uma passarela de rapazes. 

Eu e Joaquim calamo-nos, apenas continuamos a ouvir essa tolice. Achamos prudente não metermos o focinho onde não fomos chamados. Já se nos tinha tornado normal essa relação deles, na qual respeito mútuo era uma coisa de que já não se tinha conhecimento. 

A princípio, quando chegamos no quintal, esses irmãos pareciam muito unidos e felizes. Mas o tempo revelara a sujeira. Vivia-se um autêntico inferno naquela casa. Eram injúrias incessantes, brigas constantes, gritos de furor e até agressões físicas. 

Julieta larga relativamente cedo às sextas-feiras, por volta das quinze horas. Sentado na varanda, vejo ela a entrar. Cumprimenta-me enquanto olha para a sua porta fechada. Parece que ninguém está em casa. 

— Esses saíram todos o quê? — pergunta-me. 

— Não sei. Deixei-os ali de manhã quando fui à faculdade, não vi ninguém quando voltei e a porta estava assim, fechada. 

Ela vai e, segundos depois, regressa aonde eu estou. 

— Mas, sabe, esses meus irmãos não têm coração, chiii… — fala muito furiosa, em jeito de desabafo. — Eu deixei dinheiro de caril, mas todos saíram e não fizeram nada; não tem nada para comer…. Sabe, fome que eu estou a sentir! Desde manhã só comi umas bolachinhas que minha colega me serviu no job. É justo mesmo isso? 

— Eh pá, yeah, isso é muito, muito chato… — lamento. 

— Esses vão-se ver comigo hoje… 

E volta ao seu aposento, encolerizada. Eu sigo-a imediatamente e, parado à sua porta, digo, enquanto ela abre a geleira: 

— Olha, preparamos bastante comida, podes vir servir… 

— Obrigada, Beto, mas relaxa, vou preparar uma coisa rápida para comer. Julieta não vê a hora de os três irmãos regressarem à casa para o acerto de contas. O crepúsculo da tarde aproxima-se. O Sol cai lentamente e o dia passa calmamente. A 

noite chega finalmente. Porém nenhum sinal. A fúria da jovem mana quase que a consome. Tranca então a porta. Vinte e duas horas, nenhum sinal. Vinte e três horas, finalmente, ei-los aí a chegarem. De lá de dentro, a luz ainda cintila. A TV também está ligada. Batem à porta. Silêncio. Batem novamente. Silêncio. Insistem. Silêncio. Caminham para aqui e para ali; conversam, bisbilhotam, murmuram, meneiam as cabeças e de novo voltam a insistir. Silêncio. Batem com força. Silêncio!

Há, dentro da parte que arrendamos, uma porta que dá acesso à parte que eles habitam. Coincidentemente, eu estava fora quando os três irmãos chegaram. Conversara com eles durante alguns minutos e depois entrara. Segundos depois, Quina está na nossa casa: — Peço entrar pela vossa casa, mano Beto — diz agitada. 

— Não acho conveniente fazerem isso. Eu acho que deviam acalmar-se. Ela vai abrir a porta. Desse jeito poderão só piorar as coisas e… — eu tento aconselhar. Imediatamente, todavia, sou interrompido. À força, Quina abre aquela porta e entram os três, acendendo ainda mais a ira da jovem mana. 

Logo se ouvem gritos furiosos, insultos, afrontas, agressões verbais. Segue-se depois porrada. É Mário, rapaz alto e forte, a bater na irmã mais velha, porque havia agredido fisicamente a Quina. 

Achamos certo intervir. Tentamos segurar Mário, que então puxava o cabelo da Julieta, mas ele tinha-se transformado num lobisomem, dir-se-ia. Solta esta, contudo, pega em duas garrafas para parti-las na cabeça do jovem. Seguramo-la também. Por seu turno, Mário pega num garfo. Seguro depressa sua mão, firme, e quebro o garfo. Dir-se-ia que os demônios se tinham apoderado de cada elemento daquela família. 

Instantaneamente o pátio se enche de espectadores. Ouve-se por entre a multidão expectante o lamento: “Que tragédia, que vergonha!” É uma cena horrível. Segundos depois, chega o chefe do quarteirão, Sr. Rondão, um homem íntegro e cheio de dignidade. Ele está acompanhado de sua esposa, dona Rita, uma mulher muito preocupada com os irmãos órfãos. Eles eram muito amigos de seus pais. Alguém fora chamá-los minutos antes, interrompendo-os de seu delicioso sono. 

O casal entra na sala e senta com os irmãos. 

— O que é isso, Julieta? — pergunta Sr. Rondão. — Essa confusão toda, por quê? Julieta explica-se, aos soluços. 

— Mas isso não devia ter criado esse barulho todo. Vocês são irmãos! Ham, Quina…, tu que devias dar um bom exemplo à Maida e ao Mário, na ausência da Julieta. Ela é a vossa mais velha e vocês devem respeito a ela; vocês devem-se respeitar mutuamente. Vejam isso: a vizinhança toda acordou por sua causa. Não acham isso vergonhoso? 

— Vocês não podem continuar a viver assim, filhos — toma a palavra dona Rita. — Eu tenho ouvido que discutem quase sempre por aqui, e isso é muito feio! Vocês são órfãos, deviam unir-se, apoiar-se mutuamente; deviam viver em harmonia! Devem estar juntos, acreditar um no outro, para, assim, seguirem motivados em busca de seus sonhos, porque têm um ao outro. 

Os quatro baixam a cabeça. Parecem envergonhados, arrependidos. Ouvem cabisbaixos os conselhos de um casal que lhes vira nascer e que convivera muito intimamente com seus falecidos pais. 

— Seus pais eram nossos amigos — prossegue Sr. Rondão. — Eram boas pessoas. O que eles diriam se vissem isso? É desse jeito que honram a sua memória? É isso o que eles iam querer para seus filhos? 

Lágrimas começam a inundar os olhos dos irmãos. As palavras do Sr. Rondão parecem penetrar-lhes a alma, e eles parecem horrorizar-se de seus actos. Maida, Quina e Mário tentam olhar-se titubeantes, incapazes de encararem a sua irmã mais velha, que então conseguira lançar um olhar rápido para eles. 

— Eu estive com a sua mãe até ao último segundo de sua vida — continua dona Rita. — E, naquele dia, enquanto o fôlego lhe era arrancado lentamente e ela tentava lutar em vão pela sobrevivência e debatia com o desespero de ter que vos deixar também órfãos de mãe, eu tentava consolá-la com a promessa de que vocês não ficariam sozinhos, que teriam pelo menos a nós. “Eu sei”, ela disse, “e sou grato a Deus por isso. Mas o meu maior desejo é que eles aprendam a ter um a outro, que entendam o sentido de ser irmãos. Somente assim, juntos e unidos, conseguirão enfrentar os desafios deste mundo.” E eu prometi que estaria aqui para vos orientar para este caminho, o caminho da união. Está na hora de darem as mãos, filhos. 

— Precisam reconciliar-se e mudar as coisas — diz Sr. Rondão, firme e férvido. Faz-se silêncio na sala. Só se ouve o soluço dos quatro irmãos, em choro. — Perdão, mana Julieta — quebra o silêncio Mário, em sincero arrependimento. — Isso 

não se repetirá, nunca mais. A raiva tinha tomado conta de mim, perdoa-me. Eu… eu perdi o controlo. 

— Temos sido muito injustos contigo, mana Julieta — diz Quina. — Perdoa-nos por tudo. Tu és a nossa mana e não mereces a forma como te temos tratado. Vamos mudar. — Desculpa, mana… — Maida fala também, com rosto inclinado. 

— Eu também agi sob efeito da raiva — diz por sua vez Julieta. — Eu que parti para a agressão física primeiro. Devo muitas desculpas também. Espero que tudo venha a melhorar. — E melhorará — assegura Sr. Rondão. 

— Assim seja — diz dona Rita. 

Aquela fora a pior briga de todas que esses irmãos já tinham tido, mas fora a última. Com essa tão genuína reconciliação, que muito surpreendera e comovera a todos, abre-se agora um novo capítulo da sua história enquanto irmãos órfãos — um capítulo assinalado por paz e harmonia entre eles.


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