4° LUGAR – PROSA NACIONAL – CRÔNICA – VI Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 Sobre Mortos e Vivos

Eduardo Ferreira de Souza – Santo André/SP

Eu preparo uma canção que  

faça acordar os homens e adormecer as  

crianças. 

Carlos Drummond de Andrade 

Os zumbis estão na moda.  

Histórias em quadrinhos, filmes e uma popular série de TV exploram o  tema com cada vez mais apreciadores. 

De um veículo de comunicação para outro, as razões pelas quais se  tornam zumbis e o cenário em que eles se manifestam diferem. O que não se  altera é: estão mortos e se movem por alimentos. Nós, no caso. 

Os admiradores de zumbis estão mais próximos da realidade do que pode  parecer. Raras vezes um apelido foi tão apropriado como o que se dá aos  dependentes químicos que habitam as várias cracolândias existentes no país. 

O crack passa a ser o foco desses infelizes. Como os zumbis do cinema,  que vivem em estado de transe com o objetivo único de carne humana, os  zumbis das drogas vivem o mesmo transe. A diferença é que o entorpecente  substitui o alimento. 

Na descrição clássica, os zumbis do cinema não possuem discernimento,  não pensam e em sua fome são capazes de matar. Já os zumbis da droga são  providos de consciência, porém completamente distorcida pelo vício. Em sua  ânsia de consumo, podem tornar-se bem perigosos: perdem a família, o amor próprio, a dignidade. Pela droga esmolam, se prostituem, manipulam, furtam,  assaltam, extorquem. E, se no caminho da degradação o paulatino suicídio não  se consumar antes, podem chegar a matar. Como os zumbis da ficção. 

Mas o epíteto “zumbi” também pode se aplicar às pessoas que vejo no  domingo em longas filas para comer fast food. O que as motiva? Sabor não é.  Ou tem sabor de isopor ou não tem sabor algum... Isso me remete aos zumbis.  Presumo que mortos não têm paladar muito apurado. Devem se deixar atrair  pela propaganda, cores e luzes que tornam esses lugares aprazíveis para quem  tem pensamentos mecânicos e preguiçosos. Aquelas propagandas fartamente musicadas e multicoloridas são propositais para associar alimentação à diversão  fácil.  

Dirão “Vou pelas crianças”. Se gostassem mesmo de seus filhos, não  deveriam levá-las a dieta tão pobre para o desenvolvimento. Também não  podem alegar ignorância. É possível intuir que possuem acesso a informações  simples referentes à nutrição quem está no conforto de um automóvel prestes a  trocar dinheiro por lixo. 

O que me parece mais um indicativo assustador de que se trata de zumbis é o tempo. Sim, o enorme tempo em que permanecem em filas dentro de seus automóveis. Em todos os fins de semanas as filas estarão lá. Dentro do carro será que conversam os zumbis? Acariciam-se os zumbis? Cantam juntos os zumbis? Os zumbis conversam com os filhos sobre a semana que tiveram? Aposto que não. São zumbis e só o que fazem é aguardar o atendimento com  paciência budista.  

E em cada esquina, num breve passar de olhos pela paisagem urbana  estão os zumbis, outros zumbis, em seus permanentes transes. Há os que  gostam de futebol, lotam os estádios e até agridem zumbis de outros times. Há  os que comprometem o orçamento e compram à prestação tecnologia tão  sofisticada quanto desnecessária. Há os que não se comunicam pessoalmente,  só a distância, hipnotizados por celulares e tablets. Há os que ouvem música  fácil, assistem a filme fácil e cuja programação de TV resume-se a fáceis  telenovelas e telejornais sanguinolentos. Tudo fácil e básico para consumo  rápido e imediato porque zumbis não querem nem podem refletir.  

Quando um zumbi, desses de classe média, encontra um zumbi das  drogas faz cara feia, de asco, contra aquele que desperdiça a vida com vício  nocivo. Quem desperdiça o quê? A publicidade, soberana e onipresente, é  também entorpecente a induzir consumo de bens e ideias tão descartáveis e  inúteis quanto drogas.  

E uma vez a cada dois anos zumbis de todos os matizes sociais, todos  eles, de novo sob influência publicitária, igualam-se numa mesma paisagem:

Nas filas de votação são zumbis eleitores.

Felizmente há ainda aqueles que fazem barulho para despertá-los e  irritam ao incomodar o sono confortável dos conformados. São, em geral, artistas,  ativistas sociais e literatos entre outras tantas “antenas da raça” que contra a  corrente teimam em desafinar o coro hipnótico das multidões de zumbis. 

Ridicularizados e hostilizados pelos zumbis, são os nossos  despertadores. São vitais porque insistem em nos mostrar que há outros  caminhos para além dos óbvios que preponderam na alienação nossa de cada  dia.  

E, assim, mostram que é (sempre) tempo de despertar.

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