4° LUGAR – POESIA NACIONAL – VI Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 Maria

Laércio Meirelles – Torres/RS


Maria sai cedo de casa – ainda escuro, os rebentos dormem

Com a sola do sapato suja de terra vermelha 

Lamenta a cozinha pobre, limpa – limpa demais 

Fecha a porta sem trinco 

Anda por ruelas íngremes 

Esbarra em fantasmas noturnos 

Bem armados, mal-amados 

Meninas sorriem alto, poderosas 

Nos coletivos, Maria descansa, neles não cabem pensamentos
Neles não cabem nem pensamentos  

O dia amanhece na casa da patroa 

Vidros, tetos, armários, chão, cão 

Sem tempo para estar cansada, corre 

Corre à outra casa 

Mesma limpeza, nefasta rotina 

Vidros, tetos, armários, chão, gato 

‘Não esquece dos cantinhos’ 

O dia anoitece na casa da patroa 

Nos coletivos, em pé, descansa, neles não cabem pensamentos
Neles não cabem nem pensamentos  

Entre um e outro, o mercadinho 

Arroz, óleo, feijão 

Macarrão e um pedaço de toucinho

Um pacote, pequeno, de bala 

Sobe as íngremes ruelas 

Os santos não ajudaram a descida 

Não ajudam também agora 

Não frequentam esses lados 

Essas ruas, os santos já não habitam 

Desistiram 

Os meninos, muito armados e meio amados, 

Esses sim ali estão, meio anjos serão? 

As meninas ruidosas, 

Essas, sim, ali passam, meio anjos também? 

Todo anjo diz amém? 

As pernas, cansadas, não têm descanso 

— Mãe, tô com fome 

— Hoje vai ter janta? 

Vai, hoje vai 

Olha a comida: dá para uns dias 

Coração aliviado, algo ao menos é algo 

Uma das patroas pediu para ela voltar semana que vem
‘Mas não se atrase, chegue cedo’ 

Menos mal, paga o gás 

Lenha ao chão batido, mesa farta, bocas cheias, barulhentas, sorridentes
Sorrisos magros 

Na cama, sem banho, 

Corpo cansado, adormece tarde, 

Gosta de sonhar acordada, é seu momento 

Casa, carro, empregada 

Televisão grande, cama, fogão novo, máquina de lavar 

Comidas nos armários 

Panelas novas 

Marido... 

Marido não, não precisa 

Amanhã não vai trabalhar 

Amanhã não tem trabalho 

Vai aproveitar para limpar a casa,  

Buscar um jeito de dar banho nas crianças 

Ir na vizinha costurar as roupas que ganhou 

Velhas, rasgadas, sujas 

Tentar pagar a luz 

Mas isso será amanhã... 

Agora, casa ampla, cama macia, trabalho digno, carteira assinada,
[despensa cheia, Big Brother na TV grande 

E o sono vem 

Nele, sonhos reais 

Desagradavelmente reais – patroas, ladeiras e fome 

Acorda sobressaltada 

Volta a sonhar acordada 

É acordada que sonha seus melhores sonhos

 

É acordada que vive seu pior pesadelo 

Com medo, sim, às vezes Maria tem medo do que sonha
Com medo, sim, às vezes Maria tem medo do que vive
Quando acorda, agarra a medalha e pede à Virgem
À Virgem, que é Maria também 

Nossa Senhora dos Desamparados 

Amansa minha vida cheia de desgraça 

Afasta a fome que anda conosco 

Pede a Jesus 

Faça benditas a nós que somos mulheres 

Que temos filhos esfomeados, do nosso esfomeado ventre
Alivia nossa cruz 

Rogai por nós, pagadoras de dívidas desconhecidas
Agora, nestas horas que vivemos vizinhas à morte
Intervenha por nós, junto ao teu filho, 

Por nossos filhos, que seja outra nossa sorte…
Amém, Nossa Senhora, amém! 

Repete a prece, agora em silêncio 

Com pouca esperança e alguma alegria 

(é que a tristeza diária cansa). 

Em prece, Maria adormece,

Sabendo que amanhã não será outro dia…

Comentários

  1. Belo poema Laércio, destroçadamente belo, ainda mais quando me chega em pleno dia dos pais, este delírio, pesadelo ou sonho no meio de muitos dias de mães Marias!

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  2. Me transportou para a vida de Maria. Uma coisa é saber que ela anda por aí, outra é sentir o que ela sente. Parabéns!

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