3° LUGAR – PROSA NACIONAL – CONTO – VI Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 Meu avô

Laércio Meirelles - Torres/RS


Quando o canarinho da terra cantou na minha janela me vi entre dois mundos. Sorri,  entre a terra árida dos que vivem na descrença total e o solo fértil daqueles que em tudo creem. Vim morar com meu avô há exatos dois anos. Eu tinha dezessete e vivia uma fase em  que ficar na minha casa, talvez seja mais exato dizer na casa dos meus pais, significava um  sacrifício diário. Diário? Horário! 

— Adolescente é assim mesmo. 

Ouvia isto todos os dias! Dias? Ouvia isto a cada minuto. 

Enfim, culpa de quem fosse, de Deus ou dos hormônios, da minha mãe ou, mais  provavelmente, daquele que eu chamava o insuportável do meu padrasto, sentia que iria  explodir se ficasse naquela casa. Explodir mesmo, porque dos quinze aos dezessete anos ganhei  25 quilos, um monte de celulites e uns peitos tão grandes quanto caídos. Concentrei em sorvete,  batata-frita e chocolate todo meu prazer de viver. Passamos muitos dias juntos, nós quatro,  ouvindo música e lendo nada no meu quarto.  

Eu era infeliz e não sabia. 

Não sabia, mas meu avô sim. Sabia sim. Com o que hoje sei adjetivar de elegância, ele  nunca me falou nada. Nunca. A única pessoa que nunca reclamou, sequer comentou da bagunça  quando entrava no meu quarto. A única pessoa que não fez comentários sobre meu ganho de  peso, para ele eu não era um corpo. Nunca ouvi dele qualquer tipo de repreensão pelas minhas  atitudes. A única expressão que saía dos seus olhos para mim era um sorriso suave, alegre mas  comedido, generoso. Sim, que olhar generoso tinha meu avô. Acho que foi seu olhar e sua  expressão acolhedora que me convenceram quando me convidou para morar com ele: 

— Marissol, sei que você está muito bem na casa dos teus pais, mas, na idade que estou, não é fácil morar sozinho... por que você não vem passar umas semanas aqui comigo?

Eu não gostava da ideia de ir morar em um sítio. Não que fosse tão longe. E não era. Na  verdade, com um só ônibus chegaria ao cursinho que queria fazer. Mas o que me convenceu de  verdade foi que ele me fez crer que precisava de mim... nunca haviam precisado de mim. Quem  já sentiu sabe como é ruim a sensação de que você não faz falta para ninguém. E que não existe  uma alma viva, morta muito menos, que precise de você. 

Havia um quarto me esperando. Limpo, organizado, mas pequeno e com uma janela  tímida para a varanda. Ali me instalei. No dia seguinte, fui ao segundo andar, acho que há anos  não subia e nem me lembrava o que havia nele. Comentei que o quarto ao qual as escadas me  levaram era lindo, pena que estava com tanta coisa, empoeirado, e a janela que dava para o 

pomar, que permitia uma vista muito agradável, quase destruída.  

— Esse quarto era o preferido da tua vó. Dormimos nele por trinta anos. Se você quiser,  arrumo para você. Pode até me ajudar.  

Foram dias de muita conversa, arrumação cuidadosa, histórias das suas vidas que eram  transmitidas através de objetos, fotos, palavras incontidas e lágrimas contidas. E, assim, aprendi que é bom viver em um lugar arrumado. No início, quando fui para  este quarto, ficava constrangida de não cuidar das coisas tão importantes para ele ou de não  fazer da maneira que ele dizia ser “como ela gostava”. Depois, arrumar como ela faria ou  gostaria que eu fizesse passou a ser um prazer. Quando vi, passei a gostar das coisas arrumadas  daquele jeito. Lembro-me como ele sorriu leve quando pedi para que não deixasse o copo d’agua sobre a escrivaninha.  

O segundo passo do que só posteriormente descobri que era meu programa de  recuperação, ou de preparação para a vida, veio através de histórias da minha mãe. Em  momentos diferentes como um café, um pós-janta ou uma breve caminhada, me chegavam  detalhes da sua infância, da adolescência difícil, de como ela foi gorda: 

— Ela nunca me contou isso, vô.

 

— Ela não gosta de lembrar dessa fase. 

Por vezes, as histórias contavam do casamento, da viuvez, da solidão com uma criança  de colo nas mãos. De como ela cuidava de mim. De como eu chorava noites a fio e ela contava  que só às cinco da manhã havia conseguido me acalmar. Ainda assim saía para trabalhar com um sorriso no rosto, dizendo que ao menos eu estava com ela, que eu era o fato mais importante  que havia acontecido em sua vida. Contava ainda de como foi importante para ela encontrar  outra pessoa. Que ficou sem namorar cinco anos, porque dizia que apenas se encontrasse  alguém que me amasse quase tanto quanto ela, aceitaria um novo relacionamento. E, segundo  meu avô, ela encontrou. Por ele, fiquei sabendo como meu padrasto contava orgulhoso, para  todos, que havia ganho uma filha linda. O vô contou que cansou de ouvi-lo dizer: 

— Ainda bem que veio feita, eu não faria melhor.  

Esta convivência com meu avô mudou minha vida, mas mais do que isto, mudou a mim.  Não demorou muito para que outros percebessem. Eu ouvia de todos que estava mais calma.  Mais bonita. E, claro, mais magra. Regime? Não, nunca fiz. Mas ajudá-lo na horta pode ter  colaborado com a mudança de alguns gostos meus. Às vezes, me pedia o favor de molhar um  canteiro ou para mudar umas alfaces porque ele iria chegar só na hora do almoço e elas deveriam  ser plantadas na parte da manhã. Quando falei que adorava tomates, ele plantou, me ensinou a  cuidar, tirar os brotos em excesso e colher na hora certa. Sabia fazer pão, me ensinava a técnica  da fermentação natural. Colocava tanto amor e prazer nisto que comecei a comer, no início a  contragosto e depois por gosto, pão integral. Fazia iogurte do leite da sua única vaca, que ele  mesmo tirava todos os dias antes do sol nascer. Detesto iogurte, mas ele fazia com muito carinho  e oferecia com olhar de quem estava entregando um tesouro. Eu comia. Não sei se vou voltar a  comer iogurte, mas sei que vou sentir saudades daquele que ele fazia.  

Foram dois anos maravilhosos. Tenho a impressão que vivi metade da minha vida com  ele. Não apenas ouço dos outros, eu mesma sei que mudei. Mais afável, acho que era muito ranzinza, entendendo melhor minha mãe, meu pai. Pois é, depois de tudo que ouvi passei a  chamá-lo de pai. Ele chorou nas primeiras vezes.  

Acho que estar mais magra me ajudou a sentir-me mais calma. Nada contra ser gorda,  cada um sabe de si, mas sinto-me mais disposta, gosto de me ver assim. Meu avô ensinou-me que sou responsável pelo que me acontece. Citava livros, poesias e autores para me dizer que não devo entregar a outros a responsabilidade das minhas ações.  Que a única forma de ser livre é saber que sou artífice do meu destino. Aprendi muito mais com  ele, mas o que mais me marcou foi isto: sou eu que desenho meu futuro.  Nos últimos tempos ele andava diferente. Parece que sabia que seus tempos por aqui  eram os últimos. Caminhava pelo pomar e pela horta com ouvidos atentos. De longe, enquanto  estudava na minha escrivaninha, parecia vê-lo conversar com as plantas. Com sua única vaca  tenho certeza, conversava lentamente. Ficava tempos vendo os canarinhos da terra cantando na  cerca, de manhã cedo ou ao entardecer. Um dia me disse que na próxima encarnação iria pedir  para ser um canarinho da terra. Macho, para desde jovem cantar forte e alto. Sorri, enquanto ele  permaneceu sério. Seu olhar bondoso parecia me perguntar do que eu estava rindo.  Ontem, em seu velório, todos pareciam muito preocupados comigo. Não havia muita  gente, o momento de pandemia impediu que mais pessoas se fizessem presentes. Minha mãe e  eu conversamos, ela preocupada e querendo saber se eu ficaria bem. Disse que sim, perguntei  se poderia continuar morando no sítio. Ela me respondeu que faria contato com o proprietário. — Pensei que o sítio era do vovô. 

— Não, ele alugou há uns doze anos, quando tua vó faleceu. 

— Eles nunca moraram juntos lá? 

— Não, nunca, sempre moraram na cidade.  

O assunto foi interrompido. Primos, tios, vizinhos. Na hora não me liguei na relevância  dessa informação. 

O velório seguiu noite adentro, às dez da manhã foi o sepultamento. Ele parecia sorrir  quando o caixão foi fechado. Até agora eu mesma não sei porque fiquei tão tranquila. Parece  que iria revê-lo no dia seguinte. Logo depois da última pá de terra sobre o túmulo, ouvi um  canto forte, estalado. Não identifiquei de onde veio. Sorri com a coincidência. 

Alguns de nós que estávamos presentes fomos direto para a casa dos meus pais. Almoço em silêncio. Mais que dor, senti paz. Nunca havia me sentido tão em paz naquela casa. Depois  do almoço, café, doce, conversas amenas, alguns foram descansar. Preferi voltar ao sítio. Era  ali que queria dormir. Eu mesma achava estranho este meu desejo, mas senti com força que era  o que queria. Sim, eu queria dormir no sítio. 

Cheguei no fim da tarde. Tomei iogurte, comi pão integral. Depois, um cafezinho  passado, “para dormir cafeinado e ter sonhos animados”. Era o que ele dizia! De noite, minha mãe ligou. Preocupada, me perguntou se eu não preferia dormir em  casa, que ela viria me buscar. 

— Não, mãe, estou bem aqui. 

Ela fez um silêncio breve, parece que vi uma lágrima cair. Lembrei do que havia ouvido no velório, que o sítio não era do meu avô. 

— Mãe? 

— O que, filha? 

— Eu chorava muito quando era criança? 

— Não, você dormia como um anjo, doze horas por noite, nem para mamar acordava. — Mãe, você já foi gorda? 

— Por que isto agora, Marissol? 

— Só me responde mãe, você já foi gorda? 

— Não, querida, nunca fui gorda, pelo contrário, sempre magra feito um palito. Nos despedimos e eu dormi. Chorando, alegre.  

Por isto, e por muitos mais, hoje cedo, quando o canarinho da terra cantou na minha  janela, me vi entre dois mundos. Sorri, entre a terra árida dos que vivem na descrença total e o  solo fértil daqueles que em tudo creem. 

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