2° LUGAR – PROSA NACIONAL – CONTO – VI Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"
A memória é imperfeita
Jenny Rugeroni - São João da Boa Vista/SP
A estrada serpenteava pela serra, e o pequeno automóvel ia devagar. Em alguns pontos era possível ver a cidade lá embaixo, banhada pela luz do final de tarde, parecendo bem mais próxima do que os dezoito quilômetros que as placas indicavam. Ao volante, uma mulher de cabelos curtos observava a paisagem, tentando absorver nem que fosse uma fugaz tranquilidade. No banco do passageiro, um jovem alto e corado falava sem parar sobre as aulas na faculdade, o time de vôlei, as festas que frequentava com os amigos. No banco de trás, uma senhora miúda fazia um ou outro comentário com voz lamentosa.
- Marília, olha o cafezal.
A mata nativa desapareceu, dando lugar a muitos pés de café em curvas de nível dos dois lados da estrada. A mulher que dirigia olhou para a plantação, sem muito interesse, e murmurou qualquer coisa. O rapaz tocou em seu braço.
- Mãe, você sabe que horas são?
Marília olhou para o relógio no painel do carro.
- Faltam dez para as seis.
- Tudo isso? A avó Maria deve estar muito cansada.
- Não estou, não, Guilherme – disse a senhora. – Estou adorando o passeio. A gente quase nunca sai de casa, não é? Então tem que aproveitar...
Na beira da estrada apareceram algumas casas rústicas. Davam uma impressão de abandono, com as janelas de madeira descascadas, cheias de cupins. Há muito tempo, a cal nas paredes perdera a cor, tomada pelo musgo e pela umidade. Havia falhas no reboco, expondo os tijolos irregulares assentados com barro. Eu não teria coragem de morar num lugar como este outra vez, pensou Marília.
- Olha as plantações de café. Você não tem saudade, filha?
Ela ainda se lembrava de todos os detalhes. A casa da fazenda, espaçosa mas precária, com o pé direito alto e a enorme sala de estar para onde todos os outros cômodos convergiam. O assoalho de madeira. O tapete de couro de boi, que parecia encolher a cada ano. O sofá e a televisão do lado oposto da janela, o cantil e o berrante pendurados na parede. O barril de carvalho cheio de aguardente. O banheiro imenso, com azulejos rústicos, que ficava gelado no inverno e desencorajava as crianças de tomarem banho. Tinha saudade?
- Nem um pouco.
- Eu não posso ver um pé de café, que lembro do seu pai. Eu era feliz e não sabia. Que coisa estranha, pensou Marília. A nossa memória é imperfeita, e depois que tudo passa, selecionamos apenas as lembranças que nos convém. Não recordava a mãe sendo feliz em nenhum momento de sua vida protegida. O pai tinha sido tão severo e ruim para elas, incapaz de qualquer gesto de carinho, impondo suas vontades como se as mulheres da casa fossem propriedade sua. Por isso ela se casara tão jovem, deixando a fazenda e a vida limitada que conhecia.
- Eu não. Era muito infeliz naquele tempo. Me sentia uma mosca presa numa caixa de fósforos. Prefiro mil vezes a vida que temos agora.
A mãe suspirou, passando a mão pelos cabelos ralos tingidos de acaju. - Sabe que nunca me acostumei com a água da cidade? Até hoje ela tem gosto de piscina...
- Na roça era tudo água de poço – explicou Marília, voltando-se para Guilherme. – Tinha uma bomba que levava a água até a caixa, que ficava em cima do banheiro. Era duro quando a caixa esvaziava à noite. O poço ficava a uns cem metros da casa, e alguém tinha que descer no escuro para ligar a bomba. Demorava uns quarenta minutos para encher. Imagina, a gente bebia água da torneira mesmo. Nem se preocupava em ferver, no máximo colocava no filtro de barro. E ninguém ficava doente. A gente devia é ter a imunidade muito boa...
- Uma vez você me contou uma história sobre aquela menina que trabalhava na casa. Como era o nome dela, mesmo? Acho que era aniversário dela, ou coisa assim, e o tio Mário aprontou alguma arte.
Desta vez Marília sorriu. Tinha boas lembranças da infância do irmão mais novo, que agora morava no exterior.
- É verdade. Seu tio só aprontava... Ficou mais de uma semana enchendo uma cartela de ovos para jogar na Clara. O cabelo dela era bem comprido, e ficou todo melado! Aí ele se trancou no banheiro, abriu o chuveiro, a torneira e ficou dando descarga no vaso, até acabar toda a água da caixa. A coitada teve que ligar a bomba e esperar quase uma hora para poder tomar banho...
O sol se aproximava do horizonte, esmaecendo o contraste entre luz e sombra na paisagem. As imagens surgiam vívidas na lembrança, como se o tempo não tivesse passado. Clara, filha de um casal de moradores da fazenda, que tinha sido copeira da casa principal dos treze aos quinze anos. Uma menina baixinha, com cabelos castanhos e pele
queimada de sol, cópia fiel de sua mãe, que trabalhava nas plantações de café. A casinha precária onde sua família vivia, com uma enorme mangueira e um galinheiro no quintal. Clara dando milho para as galinhas. O pai de Clara ficava louco: é muita comida para elas, milho custa caro. Mas ela sentia pena dos bichos. Não queria que passassem fome. E o sol no final da tarde tingia o céu de laranja e vermelho, como esse sol de agora.
- A Clara era terrível – observou a mãe.
Marília agora pensava nos bichos da fazenda. Cabras, galinhas, patos, todos à vontade no quintal limitado por cercas de arame farpado. A cadela Neguinha, gerando e amamentando um monte de filhotes que iam ficando por ali, latindo para os carros que passavam pela estrada de terra. A poeira que invadia a casa, os vidros embaçados das janelas de madeira, os tapetes de barbante. O pomar que ficava atrás da edícula, onde ela e Mário se divertiam fazendo guerras de mamonas. Hoje em dia as frutas no supermercado custam caro, onde já se viu cobrar três reais por uma dúzia de bananas? Na roça as mangas e laranjas perdiam-se, eram muitas, as famílias não davam conta de consumir tudo.
- Não era? Você não achava a Clara danada?
- Não sei se era... – refletiu Marília – A gente tinha muita curiosidade em relação aos meninos, só. Acho que eu é que era muito boba, com esse negócio de meu pai não me deixar fazer nada. Ficava chocada com as coisas que ela me contava, mas pensando bem, era tudo normal. Ela era mais velha que eu uns dois anos, então é claro que tudo acontecia antes com ela. O primeiro beijo, o primeiro porre. Normal. Não vejo nada de errado. A gente é que era atrasada.
A idosa ainda olhava para fora. Passavam por uma porteira rodeada de flamboyants, com seu vermelho vivo anunciando a proximidade do verão. Naquela área, o acostamento estava coberto de flores.
- Sei não. Eu tenho uma cisma que o seu pai teve algo com ela.
Guilherme recordava o avô, que havia falecido quando ele tinha dez anos. Uma figura enorme, de cabelos brancos revoltos e voz firme, que ele ao mesmo tempo idolatrava e temia. Enchia-se de orgulho quando alguém da família comentava sobre a semelhança entre os dois: uma curiosidade da genética, porque Marília não se parecia com o pai.
- Por que você acha isso, vó?
A memória é imperfeita. Marília já não se lembra mais do perfume que o pai usava, do som de sua voz, de seus passos no assoalho de madeira. Nem mesmo se lembra da cor exata de seus profundos olhos azuis. Lembra-se do desejo de liberdade, da sensação
de terem-lhe cortado as asas, disso se lembra e às vezes ainda sonha, acordando no meio da noite com a ilusão de que era a menina da fazenda. O pai era rígido e moralista, gostava de tudo direito. A mãe tinha ciúmes até de sua sombra; decerto estaria imaginando.
- Teve um dia que ela ficou para jantar, e já estava escuro. Quando ela foi embora, o seu paise ofereceu para acompanhar. Não tinha necessidade, ela sabia o caminho, estava acostumada. Então nesse dia ele demorou para voltar, acho que foi aí que tudo aconteceu. - Será que ele não parou para conversar com os pais dela?
- Não tem por quê. Eles se encontravam todos os dias na roça.
Guilherme começou a tamborilar com os dedos nos joelhos, num gesto de impaciência.
- Eu não acredito que meu avô tenha feito isso.
- Também acho difícil. Ele não era santo, devia ter lá as suas mulheres por fora. Mas a Clara era menor. Não acho que ele ia querer encrenca.
- Que menor! Naquele tempo ninguém ligava para essas coisas, não. Naquele tempo era difícil ser mulher. Marília encontrava pouco apoio para sua insistência em querer estudar. Eram quarenta minutos na perua Kombi da prefeitura para chegar à escola na cidade, e nunca voltava para casa antes das onze e quarenta da noite. Clara não frequentava a escola. Os pais achavam que menina não tinha que estudar, para não ficar botando na cabeça que era melhor do que o marido. Bastava ler e escrever o mínimo e ser prendada. Faculdade era uma pouca-vergonha, uma moça como Marília não haveria de querer frequentar um ambiente onde se aprende tanta imoralidade. - Fico imaginando a Clara com seu pai naquele banco de madeira, debaixo do jacarandá. Parece até que estou vendo...
- Não é possível, mãe! Bem ali, onde passava todo o mundo!
Marília sentiu uma fisgada de culpa por ser dura com a mãe. Mas também, ela falava muita bobagem, acreditava em tudo que lhe diziam. Tinha de creditar essa inocência à sua falta de instrução, ao pouco conhecimento do mundo além das cercas da fazenda. Mas via claramente o motivo pelo qual deixara tudo para trás; não quisera ser como ela, não quisera enterrar seus sonhos e viver para as expectativas alheias.
Guilherme não achava a avó ingênua. Às vezes a surpreendia falando coisas maldosas, com intenção de ferir. Doía ver o quanto ela reclamava do adorado avô, querendo atrair a compaixão das pessoas. Por que uma vida ao lado dele, se era tão ruim?
- Eu só sei que, depois de uns dias, ela apareceu com uma correntinha de ouro. Quando perguntaram pra ela, disse que foi o patrão que deu. Aí fiquei mesmo com a pulga
atrás da orelha. Ele nunca deu correntinha nenhuma pra você que é filha, por que ia dar para a empregada?
- Tem que ver se foi mesmo ele que deu – murmurou Guilherme.
- Por que ela ia falar isso, se não fosse verdade?
- Ah, sei lá! Podia ser de algum admirador, não é? E se ela não queria que os pais soubessem?
A cidade estava bem mais perto agora: a placa indicava seis quilômetros. Já haviam completado a descida da serra. Não se via mais o sol. Marília permanecia muda, absorta em seus pensamentos inquietos. Ainda podia ver Clara dando milho para as galinhas nos fundos da casa minúscula com a mangueira no quintal, ou dando risadinhas tímidas quando algum menino da cidade estava por perto.
Por que levantar suspeitas de velhos pecados? Seu pai estava morto, e Clara casada. A antiga copeira da fazenda hoje fazia doces para festas sob encomenda, numa cozinha arejada e muito limpa. Tinha duas filhas que se esforçavam para estudar; o marido era trabalhador e bondoso. Ainda era tímida, e conservava os cabelos compridos presos num coque. Marília não se surpreenderia se ela criasse galinhas no pequeno quintal da casa na cidade.
- Que importa isso agora, mãe? Para que revirar o passado? Nós nunca vamos saber.
- Pois eu tenho certeza! Ninguém tira isso da minha cabeça.
A memória é imperfeita; Marília já não sabia se o pai tinha sido um homem íntegro. Recusava-se a compactuar com a angústia e o rancor da mãe. Nunca ouvira falar de nenhuma correntinha de ouro, nem de qualquer pecado escondido de sua companheira de infância. E se algo tivesse acontecido, por que a culpa seria da menina quase analfabeta de catorze anos, enquanto o fazendeiro de quarenta e cinco era um pobre homem vulnerável às tentações?
Deveria procurar Clara? Com que pretexto? Como é que iria surgir do nada, e perguntar: meu pai te causou algum mal? Depois de tantos anos, como amenizar o que estava feito? Tinha que pensar. Tinha que decidir. A tranquilidade inspirada pela paisagem havia sido fugaz; tudo tão calmo lá fora, e por dentro a tempestade que se agitava. Só podia desejar que a memória de Clara também fosse imperfeita, e não lhe roubasse a coragem para enfrentar a vida.
À sua frente, as primeiras estrelas começaram a surgir.
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