1° LUGAR – PROSA NACIONAL – CONTO – VI Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco"

 A invisível misancene do amor vista pelo buraco da fechadura

Luiz Henrique Aguiar - Magé/RJ


De mãos dadas, pai e filho caminham pela avenida até a parada de ônibus. É manhã de domingo, ninguém tem pressa, o sol de outono não castiga tanto.

A criança, com seus seis ou sete, talvez, oito anos, calça um tênis que pisca e traz uma mochila de super-herói nas costas. O homem, de camisa de botão, lisa e bem passada, penteia cuidadosamente o cabelo volumoso com um pente flamengo preto. As roupas bem cuidadas supõem um passeio ou visita a algum parente; afinal, é domingo, o pai está em casa, e isso significa que coisas que só acontecem aos domingos acontecerão hoje.  

Completamente alheios à movimentação da cidade, ao barulho dos carros, à população de bicicleta que vai e vem, ao colorido e ao furdunço do dia, os dois só têm atenção um para o outro. Nem o carro de som que grita a promoção do supermercado desperta os dois da contemplação mútua. Leve sobre a calçada, o filho, animado, gesticula e fala ao pai, talvez querendo resumir toda a semana na escola, as brincadeiras de rua, as estripulias de menino que o outro desconhecia por sair cedo de casa para o trabalho e retornar tarde. O homem, atento à narrativa, põe as mãos na boca, faz cara de espanto, corrobora as pantomimas do pequeno, exagerando nas feições grotescas. São dois amantes que se reencontram sem o mínimo pudor de manifestarem publicamente a alegria de estarem juntos. 

Dentro do carro, do outro lado da rua, após guardar as frutas e legumes no porta-malas, nada mais assalta meus olhos do que os movimentos dos braços e mãos que comunicam o amor de pai e filho. São dois elegantes dançarinos bailando à revelia da plateia. A criança saracoteia ao redor do homem, com suas mãos pequenas e ágeis, seus cabelos pretos ao vento, os saltos ao invés de passos. Tenta a todo custo reter o olhar do adulto, obter dele as reações de surpresa e admiração aos malabarismos e rodopios que infelizmente traem o aprendiz de acrobata: ele enrosca os pés, perde o equilíbrio e cai. O menino se retrai, limpa os joelhos e as mãos, envergonhado pelo tropeço diante do pai, justamente quando executava seu salto acrobático mais mirabolante. Mas o pequeno é artista, não deixa o espetáculo parar um só momento, principalmente porque o espectador é muito importante. Rapidamente, ergue a cabeça, e sua energia alvissareira retorna num passe de mágica: pronto, estou aqui de novo. 

De repente, os dois se detêm, e o homem se curva para amarrar o cadarço do garoto e ajeitar alguma coisa fora do lugar na sua camisa. O guri, travesso e divertido, não perde tempo e desarruma com dedos ávidos os cabelos do pai, que, instintivamente, para não deixar buraco na cena, segura os braços do moleque, pega-o pela cintura e se diverte arremessando-o espaço afora. No voo, o astronauta mirim aterrissa em cima de ombros largos. Mal vê a terra do espaço, é puxado pelas pernas e destronado de volta ao chão numa pirueta que o desconcerta de tanto rir. 

Retomam a curta caminhada de mãos dadas, e o filho, saltitando feito um beija-flor incansável, cantarola uma canção. 

Sentados agora no banco do ponto de ônibus, os dedos grossos do adulto, certamente um trabalhador braçal, irritam graciosamente o garoto, castigando-o ao ponto de fazê-lo gargalhar. Ele tenta se desvencilhar das mãos fortes e protetoras, fazendo cócegas no homem, que abre um largo sorriso, dando-se naquele momento por vencido. 

O menino, então, tal qual um soldadinho de chumbo, põe-se de pé na frente do pai e demonstra também ser forte e alto: eleva com vigor a mão direita à cabeça, comprovando já ser grande, mas senta-se dengoso no colo paterno logo a seguir. 

Olhando bem de frente para os dois, observo o encantamento do pai pelo filho, provavelmente devido à formosura do rebento frente aos traços rústicos e desalinhados do adulto. O largo sorriso dado há pouco revelou nitidamente esse descompasso entre criador e criatura: não é bonito. Tem o rosto bruto, grande, lábios grossos, dentes tortos, a pele ressecada e rugas de expressão precoces. Por isso, admira o filho como uma revelação, um desenho de linhas delicadas que seus dedos ásperos tocam com cuidado. Seu olhar vidrado na criança é de quem a vê como um presente dado pela vida. Um ajuntamento de graça e beleza que ao mesmo tempo o envaidece e alimenta de sonhos seus músculos enrijecidos pelo trabalho. Só lhe resta cobrir de beijos as bochechas rosadas pelo sol; se pudesse, até as lamberia como um animal lambe a cria recém-nascida.  

O pai aproveita para dar uma vasculhada no ouvido do garoto; com certeza não quer passar por descuidado na visita à casa da avó, da tia, do compadre, sei lá.  Checa mais uma vez o alinhamento das roupas do filho, conserta a gola dobrada, retira o pente flamengo do bolso e penteia seus cabelos para o lado. Aproveita o momento de 

inércia do pequeno, que tem os olhos fixos em mim, e encosta suavemente sua cabeça no peito.  

Mantém a criança no colo, entrelaçando-a com extremo afeto, levanta ligeiramente a cabeça, olha o céu azul e solta um suspiro. O filho ergue um dos braços e se põe a alisar carinhosamente o rosto áspero, mas acolhedor do pai enquanto insiste em olhar para mim. 

Um intruso bisbilhotando a felicidade alheia: é esse o olhar inquisidor lançado na minha direção. Quem é esse senhor de olhos parados e boca semiaberta, também alheio à movimentação da rua ao seu redor? Quem é esse homem com a testa suada, flagrado como um menino que observa pelo buraco da fechadura? Quem é o espectador inebriado que se assusta quando a quarta parede do teatro é quebrada de repente, e o protagonista do espetáculo o encara, surpreendo-o com os olhos marejados?  Percebi o exato momento em que seus olhos piscaram, colocando-o também na cena, perdido e embaraçado. Como nosso espetáculo o tocou. Por algum motivo, eu e meu pai, com nossa singela apresentação verdadeira, trouxemos lembranças ou mesmo evocamos momentos que jamais lhe ocorrerão. Pobre criatura acuada no seu carro, surpreendida feito uma criança por outra criança que a esquecerá no próximo minuto. 

Ligo o carro para fugir ao constrangimento, mas um ônibus estaciona na minha frente para a descida de passageiros. Ainda reflito se vou permanecer ali ou não, se vou encarar o menino, se vou encerrar esta história. Quando o veículo parte, pai e filho não estão mais no banco. Por um segundo, a ausência abrupta dos dois causou-me pânico, uma ausência de olhos, um lapso da visão, um precipício aberto na minha manhã.  

Abro a porta do carro na tentativa de encontrá-los, mas vejo, do outro lado da rua, um ônibus dobrando a esquina e desaparecendo, provavelmente o ônibus que os roubou de mim.

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