Vencedores Prosa Nacional – V Concurso Literário "Cidade de Ouro Branco" – 2022

Vencedores da categoria Prosa Nacional


FILOSOFIAS DE MÃE

Júnio Liberato

Porto Firme/MG – 1º Colocado

 

Crianças são verdadeiras mestras quando o assunto em pauta é brincar, eu por exemplo me encaixava muito bem neste seleto grupo, e sem exageros. Foram anos incríveis aqueles, os dias em que fazia minhas peripécias e artimanhas como ninguém, parecia até que as broncas e ameaças feitas em função das aprontas anteriores não passavam de uma notificação sem peso penal, isentas de graves consequências. Embora tenha me criado na maior parte do tempo sozinho e sem irmãos (e, diga-se de passagem, sempre fui de ter poucos colegas), ainda assim não hesitava em fazer uma bagunça danada quando a ocasião me concedia a dádiva da oportunidade. Poucos locais eram propícios para “dar meus shows” como a sala de aula ou a escola como um todo, era o cenário perfeito com direito a plateia e tudo, local ideal para que minhas brincadeiras, bem como as artimanhas abandonassem o campo da imaginação e ganhassem vida. Juntamente aos meus coleguinhas de classe, também repletos de energia e igual vontade de gastá-la, tornávamos a vida dos professores ainda mais complicada, e pra piorar, muitos deles mais ousados do que eu, eram autores de atrocidades inimagináveis mais petulantes até que as do Denis pimentinha, estas mesmas que prefiro resguardar-lhes de detalhes, já que fogem aos meus costumes de criança inocente cujos subterfúgios não passavam de leves infrações. Qual criança nunca quebrou aquele vaso de flores sobre a cômoda de herança para qual a vovó tinha tanto carinho ou ainda o retrato emoldurado que a mamãe com tanto zelo mantinha pregado junto à parede ao lado de outros e igual importância? Nossa, como ela excomungava todos os nomes possíveis que se recordava, quando eu sequer pensava em arriscar um desaforado lance com a peteca ou a bola, teimando em fazer da sala de casa um campo de futebol ou uma quadra de vôlei improvisada. Pois é, aos que nunca agiram desta forma quando criança sinto informar que as crianças sonham desejam e até vivem aquilo como se já o tivessem conquistado, os adultos por sua vez, desejam e sonham, lutam para conquistar, no entanto, nas raras ocasiões em que conseguem, já não têm mais tempo nem condições físicas para viver a mágica daquele momento.

            Uma das coisas que me recordo com bastante carinho e das quais sinto tantas saudades, são os episódios em que minha mãe, tomada por uma indignação que beira os limites da existência, me chamava compenetradamente a atenção, ou em casos mais dramáticos e desesperadores me xingava, e logo em seguida tecia uma ameaça: moleque, cê vai apanhar! Tudo isso em decorrência de alguma transgressão de minha parte, de alguma ordem dada ou aviso previamente estabelecido que foram transgredidos, já que eu, como arteiro de mão cheia que era, os extrapolava de todas as maneiras possíveis e aí não tinha jeito, era vara mesmo e couro comia solto. Quando a surra era de chinelo eu ainda agradecia, já que não ardia nem doía tanto quanto aquela aterrorizante varinha de eucalipto que lambia minhas pernas e cochas com tanto apetite que eu me sentia sendo devorado por ela, enquanto sentia o tempo passar tão lentamente parecendo trabalhar a favor da mão zangada e concentras da minha mãe e contra mim. Essa vara é mesmo cabulosa, para todos que já tiveram o desprazer de ter uma seção em particular com ela após aprontar uma das boas já estando a mãe no limite da paciência, sabe bem e com detalhes do que estou falando e se lembra com fidelidade, agora não mais com pesar, já que é fato passado da infância, e bem sei que muitas coisas que o tempo levou para longe são recordadas com um sorriso bobo e desapercebido no rosto. Bem, para aqueles que de algum modo tiveram o “privilégio” de apanhar somente com um chinelo de dedo e não com cabo de eletrodomésticos, fitas de couro ou lascas de bambu, vai aqui uma pequena e breve descrição da temida varinha que cito acima: não é uma vara comum, e avaliando assim com maior cuidado, tenho até a impressão que ela é obra de uma espécie de “tecnologia avançada” que trabalha em favor das mães, sendo que tem junto ao seu ramo principal vários galhinhos menores, e quanto mais fina ela for, mais arde ao entrar em contato com o lombo desavisado de criança bagunceira, mais a surra dói e mais devagar nos demoramos a esquece dela. Adquirida de forma rápida e acessível que dispensa cerimônia ou rituais de qualquer tipo é cortada com a faca da cozinha mesmo a alguns passos quintal adentro, não é descascada nem lavrada, apenas suas folhas são arrancadas sem muito zelo, e eis que ela já está pronta para ser usada.

            Apesar de ser uma criança sapeca, eu sabia que tudo aquilo era consequência de uma falha de minha parte, e sabia também que a minha mãe o faze com certo pesar, entretanto, ao mesmo tempo temia futuras falhas no meu caráter caso eu passasse ileso após desrespeitá-la, e em decorrência de tais episódios, por experiência própria sou capaz de afirmar que palmadas e varadas, quando aplicadas como elemento disciplinador não são métodos de tortura e tampouco meios que violam de algum modo os direitos da criança como insiste e dizer a lei. Nunca conheci uma criança que morreu ou ficou aleijada por tomar umas varadas bem dadas de vez em quando. Outra coisa que me traz bastante saudade são as célebres falas que minha mãe entoava quando buscava enfatizar uma ideia quanto a algo que eu, por preferir brincar ou vadiar, me negava a fazer. Um exemplo que não me sai da memória e que tenho rápido acesso quando interrogado, foi um episódio em que cheguei da escola totalmente coberto de lama, era um dia chuvoso daqueles que a fina garoa caía o dia inteirinho; tudo bem até aí, o problema todo é que eu não podia ver uma poça d’água ou de lama que logo me punha a brincar e a rolar dentro delas. Certo dia, depois de uma aventura dessas no caminho de volta pra casa, cheguei completamente coberto de lama, e minha mãe imediatamente ao me ver após se opor ao ocorrido e me repreender com duras broncas, me obrigou a lavar as próprias roupas. Neste episódio isolado ela não me bateu, não sei que milagre foi aquele, mas acho que foi uma chance que ela estava me proporcionando a fim de que eu pudesse concertar o erro cometido através de uma alternativa que não envolvia punição física, já que as mães em sabem como moldar corretamente o caráter de um filho que no caso é um ser humano em construção. Apesar de contrariado confesso que fiz, mas fiz reclamando, e nada me   incomodava mais naquele momento que a borda fria do tanque de pedra que estava ainda mais frio em decorrência do clima gélido típico de dias chuvosos. Enrolei, reclamei, indaguei, mas por fim acabei, e não é que ficaram bem lavadas? Pois é, e foi então que minha querida mãe se aproximou meio cismada lançando logo de início um olhar desconfiado quanto a veracidade da tarefa concluída, mas no final das contas ela cedeu suas defesas e me elogiou pelo trabalho bem-feito. Apesar de me dar muitas broncas, minha mãe sempre foi carinhosa e dedicada, sabia muito bem elogiar quando a ocasião exigia elogios. Muito bem, disse ela. Tá vendo só? Quebrou as suas mãos lavar as suas roupas? Agora vê se aprende a não rolar mais na lama como um porquinho no chiqueiro. Essas falas sempre ficarão eternamente marcadas em minha mente, até porque foram elas responsáveis por fazer de mim o homem que hoje sou, mas acima de tudo, agradeço imensuravelmente a minha mãezinha, que me criou com os mesmos valores com os quais foi criada, e estas falas que saíram de sua boca, se tornaram minha principal filosofia de vida, uma vez que as mães tem uma filosofia própria, mesmo nunca tendo lido Nietsche ou Espinosa.                                                               

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O PADRE

Ângela Magda Soares Veríssimo

 Ouro Branco/MG – 2ª Colocada

           

Elis era uma jovem sonhadora, cresceu assistindo aos filmes da Disney, acreditava no amor à primeira vista, em almas gêmeas e que um dia encontraria seu príncipe encantado.

            Era moça coo todas as outras, extraordinária professora de geografia, viajava com seus alunos pelos países, através dos livros, motivando-9s a conhecer outras culturas e dando uma perspectiva a quem não tinha como viajar. Dedicada ao trabalho, adquiriu algumas posses. Nada relevante, apenas um carro e investimentos bancários.

Elis morava em Congonhas do Campo, no Estado de Minas Gerais, aos domingos ia até o Santuário do Senhor bom Jesus de Matosinhos ver os turistas com seus idiomas diversificados, e em um desses passeios, foi observada por um rapaz muito bonito. Passando-se por turista aproximou-se e lhe pediu informações.

              Oi, menina linda! Estou visitando a cidade pela primeira vez, você sabe me explicar sobre as estátuas dos profetas? – O homem perguntou.

            Elis ficou lisonjeada ao ser chamada de linda. Cordial, explicou o que sabia, falou sobre Aleijadinho, as 12 esculturas e as Capelas dos passos da Paixão de Cristo.  

             – Você, além de linda, é muito inteligente, pode me mostrar os pontos históricos da cidade? – Disse o rapaz, encantando Elis.

Fizeram alguns passeios pela cidade estabelecendo uma amizade e de súbito, ele passou a buscá-la no trabalho, dizia estar de férias e que queria aproveitar sua companhia até voltar para sua cidade. Até que lhe deu uma notícia:     

             – Elis, pedi demissão do meu emprego para ficar perto de você porque estou apaixonado, ou procurar um trabalho por aqui. Quer namorar comigo? – Disse-lhe com flores nas mãos.

            Elis aceitou o pedido, estava envolvida com aquele homem tão romântico, pois nunca fora tão bem tratada! Passados outros meses, o rapaz lhe reportou uma nova situação.

-Querida, não consegui emprego e meu seguro-desemprego está no fim, decidi montar um negócio. – O que você acha? – Questionou.

            Apaixonada, Elis faria tudo por aquele homem. Ele a levou até um galpão abandonado e disse que a empresa seria montada naquele lugar, persuadindo-a com palavras e carícias a propor o que queria.

             – Vou ajudá-lo em seu negócio! – Ela ofertou.

            O rapa demonstrou alegria com a proposta e aceitou imediatamente.

             – Obrigado, mas só se você for minha sócia! – Ele respondeu.

            Ela, que depositava toda confiança no namorado, se sentiu valorizada porque o amado fez questão que fosse a sócia majoritária e ele seria apenas o procurador da empresa. Sacou seus investimentos e os entregou em suas mãos.

            Sabiamente, o rapaz foi até uma joalheria e comprou alianças.

             – Elis, aceita se casar comigo? – Perguntou o conquistador.

            Muito emocionada ela aceitou e foram até a igreja para marcar a data do casamento.

            Os preparativos do casamento, como aluguel do vestido de noiva, a festa, ocuparam o tempo de Elis que não voltou ao galpão. O noivo, sempre carinhoso, dizia-lhe que o negócio começava a prosperar e que havia alugado uma casa para morarem, mas que seria uma surpresa para depois do casamento e ela, cega de paixão, acreditou.

            No dia do casamento, os convidados compareceram e Elis ficou esperando no carro pela sua hora de entrar, mas não demorou muito para lhe dizerem que o noivo não havia chegado. Esperançosa, ela continuou esperando no carro até que celebrante avisou que precisaria realizar outra cerimônia e os convidados foram embora.

            A dor de Elis foi imensurável, todavia continua se engando, pensava que o amado poderia estar com problemas, sofrido um acidente e foi até o galpão na esperança de encontrar uma explicação; porém, quando chegou viu que tudo estava abandonado e foi informada da inexistência da empresa.

            Desesperada, ainda vestida de noiva, pegou seu carro e dirigiu até o Lago Soledade no município e Ouro Branco com o propósito de se matar.

            Sem esperanças, aos prantos caminhou em direção ao lago com o buquê nas mãos e quando seus pés estavam submersos, ouviu um barulho, virou-se e viu um padre.

             – Tudo bem? – Ele perguntou.

            Confusa, ela saiu da água e se aproximou.

             – O que você estava fazendo na água, minha filha? Indagou o religioso.

            Ela começou a chorar. Ele a convidou a sentar numa pedra e começaram a conversar olhando o lago. Elis contou tudo que lhe aconteceu e falou sobre sua vontade de morrer.

            Uma vida perdida não volta, você não imagina quantas vidas se foram nesse lugar. Havia aqui uma casa de campo dos seminaristas lá da sua cidade e uma bela capela, muitos animais se afogaram com a inundação. Você tem muito que viver, novos amores virão você viajará e om o tempo tudo estará sereno como essas águas. –Asseverou o sacerdote.

             – Que vergonha! Suspirou Elis.

             – O que acontece conosco é para nos fortalecer, são as provações terrenas. – Afirmou o religioso.

            -Mas o que falarei para as pessoas? Como olharei todo mundo? – Perguntou Elis.

             – Encare a todos de frente, supere sua dor e seja exemplo para outras moças. – Ele disse.

             – Padre, muito obrigada! Quase fiz uma burrada!  – Agradeceu a Elis, levantando-se e secando suas lágrimas. Todavia, quando se virou para se despedir, o senhor havia sumido: olhou para o lago e o viu andoando sobre as águas em direção à ruína da capela submersa. De súbito, sentiu pavor e correu sem olhar para trás em direção ao carro, deixando o buquê cair de suas mãos.

            Quando retornou, sua mãe a esperava inquieta na porta de casa e abraçou amorosamente. – Graças a Deus, você voltou filha! Estávamos preocupados!  – Disse.

            -Está tudo bem mãe! Vou tomar um banho. – Elis respondeu.

            Quando saiu do banho, sua mãe a aguardava.

             – Eu pedi para as pessoas não virem aqui. – Falou.

             – Não sei como olharei para essa gente! – Afirmou Elis.

             – Isso não é o fim do mundo, lembre-se do conselho do padre. – Argumentou a mãe.

             – Que padre? – Perguntou Elis assustada.

             – Aquele que conversou com você no lago, ele esteve aqui, mas não entrou, veio trazer o buquê que você esqueceu[U1] [U2] . – Contou a mãe.

            Elis olhou aterrorizada para o buquê, tentou jogá-lo fora, mas não teve coragem. Na manhã seguinte, depositou-o em uma lápide no cemitério. Precisava enterrar aquela história. Entretanto, quando entrou em casa, o buquê estava intacto em cima do sofá.

             – Meu Deus! Será que estou enlouquecendo? Preciso me desfazer desse buquê assombrado! – Pensou.

            Decidiu deixá-lo no Santuário do Senhor Bom jesus, onde tudo começou.

             – Bom Jesus! Ajude-me! Aceite esse buquê, não posso vê-lo nunca mais! Só me traz sofrimento! – Implorou em oração.

            Saiu da igreja, olhou e o buquê, havia desaparecido.

            Superada a decepção, ela “arregaçou as mangas” e iniciou uma investigação para descobrir seu algoz, pois tinja seus dados pessoais usados para a abertura da empresa e para marcar o casamento.

            Pelas redes sociais conseguiu seu endereço e com os documentos que comprovavam o golpe sofrido, foi até à delegacia e registrou uma ocorrência.

            Deu-se início a um inquérito e depois a um processo criminal, quando se encontrarem na audiência, o homem continuou dizendo que a amava, que tudo era um mal-entendido e, quando saiu o veredito foi inocentado por falta de provas.

            Sabedora de que a justiça não seria feita, ela disse que o perdoava e o convidou para passear, levou-o até o Lago Soledade. Quando ele desceu do carro, ela arrancou, deixando-o para trás.

             – Sua louca! O que você está fazendo?   – Ele gritou, mostrando sua verdadeira face.

            Elis olhou pelo retrovisor e viu o Padre se aproximando do rapaz, deixando-o imóvel. Foi última vez que viu os dois.

            Poucos dias depois, recebeu um telefonema do gerente do banco, e todo o valor que lhe foi furtado, havia sido devolvido sem nenhuma explicação. Ela teve uma certeza: a justiça foi alcançada!


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MORADA DAS LUZES NA TERRA DO NUNCA

Carlos Magno de Almeida

Timóteo/MG – 3º colocado

 

A noite estava chegando. Uma chuva fina caia desde a manhã. Estava frio. O portão automático se abre na propriedade dos Caldeira. O carro cinza entra, subindo uma rampa da casa, margeada por um pequeno bosque.

Os irmãos gêmeos, Tony e Lucia correm para encontrar com o pai.

 – Meninos, parem de correr! – Fala, severa, a Sra. Margô, mãe adotiva das crianças

 – Vou ...chegar...primeiro... – cantarola a alegre menina.

 – Ah! Você me enganou – diz o irmão, fazendo bico, logo atrás dela.

Lucia abre a porta da entrada da casa enquanto o pai sobe os degraus da varanda.

 – Olá, meninos, tudo bem?  – O Sr. Jorge Caldeira abraça os filhos adotivos.

-Lucia não me deixa brincar com o cavalo de corrida... – reclama Tony.

 – Eu deixo sim, mas ele nunc guarda. Deixa tudo espalhado – explica a menina.

Margô chega. Abraça e beija o marido, olhando de soslaio para as crianças, que já se acostumaram com certa indiferença da mãe.

Por serem pais adotivos, Margô ainda não havia aceitado muito bem a ideia. Quando os pais dos gêmeos morreram em um acidente de carro, Jorge Caldeira, tio paterno das crianças, resolveu ficar com eles e os adotar. Pois já estava casado com Margô há alguns anos e ainda não tinham filhos, embora quisessem ter.

 – Vou tomar um banho. Estou com fome. E vocês, crianças? – pergunta Jorge.

 – Elas já comeram... – começa a dizer Margô, mas as crianças a interrompem, dizendo:

-Estamos sim – respondem juntos os irmãos.

 – Então, vão lavar as mãos e me esperem. Já volto – diz Jorge, subindo ao quarto.

 – Aproveitem e arrumem suas coisas. Tem brinquedos espalhados para todo lado. Vão! Se apressem – fala, meio irritada, Margô.

Tony e Lucia correm para o quarto, que fica no segundo andar, no final do corredor, do lado esquerdo da casa. Entram no quarto e começaram a juntar os brinquedos.

 – Eu não te disse? – falou Lucia – Não guarda os brinquedos, leva bronca...

 – Não tem nada não... Margô é chata mesmo – disse Tony.

 – Tony! – exclamou Lucia – ela é nossa mãe, esqueceu?

 – Mãe de mentirinha, não é? O nosso pai Jorge é legal.

Tony fica meio cabisbaixo e senta no chão, com o cavalo de corrida entre as mãos.

 – Eu tenho saudade do papai e da mamãe – diz Tony, tristonho.

Os olhos do menino ficam marejados de lágrimas, mas Lucia procura animá-lo.

 – Vamos logo. Já guardei os meus. Guarde o cavalo e vamos descer – fala para ele.

 – Meninos!... – fala Margô, da porta do quarto. Eles se assustam.

 – Vocês já estão crescidinhos. Venham. Jorge já desceu – diz Margô.

Quando Margô se vira e desce a escada, Tony, mais exaltado, fala para a irmã:

 – Eu ainda não sou grande. Tenho só sete anos. E não quero crescer mais.

 – Ora, seu bobo, todos crescem. Nós também... – diz Lucia.

A fala de Lucia foi cortada por algo inesperado. Nesse momento, o quarto toma um tom verde azulado, salpicado de pontos dourados. Um arco-íris atravessou a parede, entrando pelo quarto, deixando tudo furta cor. Já era noite.

O teto do quarto foi substituído por nuvens amarelo-brilhantes. A parede, próxima a janela, se abriu, dando espaço para um túnel claro, sem fim. O arco-íris se projetou pelo túnel, como uma infinita passarela colorida, esperando por alguém. Tony segurou no braço de Lucia, com os olhos arregalados, Lucia também estava com medo.

 – Vamos sair daqui, depressa! – falou Lucia

A menina foi em direção à porta, mas sesta se fechou. Não se via mais o quarto, somente um espiral de cores e o túnel aberto à frente.  As crianças, assustadas, deram um grito, quando, subitamente, surgiu no túnel, um ser alado, se aproximando dos irmãos.

Jorge e Margô, na cozinha, se assustaram.

 – O que é isso? Parece um grito – falou Jorge.

 – Não sei bem, mas deve ser só algum animal barulhento no bosque. Vem muitos bichos da mata pra cá. Continuaram juntando os vasilhames na pia da cozinha, para lavar.

No quarto, “aquilo” que vinha no túnel, planando sobre o arco – íris parou diante dos irmãos. O ser, de face brilhante, olhos claros, cabelos esvoaçantes e pele de tons esverdeada, vestindo apenas um curto short desfiado e com uma bolsa a tiracolo, fitou os irmãos, a certa distância. No seu pescoço um colar de pérolas negras.

De súbito, o pequeno ser alado ficou de pé, na entrada do túnel e perguntou

 – Vocês vêm ou não? Estou com pressa. Tenho outros meninos para buscar.

Lucia e Tony se olham apreensivos, sem saber o que dizer.

 – Ir pra onde? – perguntou Tony, amedrontado.

-Não queremos ir pra lugar nenhum – disse Lucia.

O pequeno ser deu um giro sobre si e pairou sobre os irmãos, rodeando-os alternando a rotação. Observava os irmãos com curiosidade. Por onde sobrevoava, pairava uma nuvem de um pó brilhante.

Lucia com seus cabelos cacheados, em tom castanho, pele clara e olhos também castanhos, parecia ser menor do que ele. Tony de cabelo escuros e penteados de lado segurava em suas mãos seu boné cáqui com um emblema de time. Com sete anos, os irmãos não tinham ideia do que estava acontecendo e estavam muito assustados. Mas Lucia, nem tom corajoso, perguntou:

 – Quem é você, garoto? Como você pode voar? Ninguém pode – conclui.

O garoto parou de voar e começou a descer, vagarosamente, à frente dos dois irmãos, que olhavam com espanto e curiosidade aquele menino, magro e esquisito.

 – Eu sou aquele que vai tirá-los desta prisão e leva-os rumo ao desconhecido. Preparem-se para experimentar grandes aventuras. Para onde vamos vocês terão a vida inteira para curtir e brincar. Descobrir novas coisas... sem medo de nada e sem ter pais para lhe colocar na cama – falou o menino, com ar de interpretação agitando os braços e mãos. Deu uma cambalhota no ar girando e parando novamente em frente aos meninos.

 – Mas quem é você e pra onde quer levar a gente? – pergunta Tony.

  Ainda não abem? Há, há, há – o menino alado dá uma gargalhada. Dando mais uma cambalhota, diz – Sou Peter Pan, seus tontos e vamos para a Terra do Nunca.

 – Não me conhecem? Pergunta Peter, surpreso.

 – Peter Pan não existe, é só historinha pra crianças – fala Lucia.

Peter Pan pula e para em frente a Lucia, com ar sério. É um pouco maior do que a menina, que se assusta.

 – Sim. É história pra crianças. E vocês são crianças, não são? Para ver se estou dizendo a verdade, é só vir comigo de qualquer maneira, tenho de levar o Tony, pois ele me chamou aqui.

Tony se assusta e diz – Não! Eu não te chamei.

 – Chamou sim – diz Peter Pan balançando o dedo, apontando para Tony.

 – Nem te conheço – fala Tony.

Peter Pan, mais uma vez se desloca no ar e para em frente a Tony, dizendo:

 – E quando você disse que não queria crescer? Você disse, não disse?

Tony balbuciou, meio engasgado, respondendo – mas falei só brincando!

 – Pois é. Eu busco aqueles que não querem crescer, aqueles que não têm pais, ou vivem sozinhos, nas ruas, entre outros... é claro. Mas não se preocupe, amigo. Lá será muito mais divertido. Não vai precisar se preocupar em guardar brinquedos arrumar cama, tomar banho essas coisas de gente grande... e boba – diz Peter Pan.

-Vamos... – Peter olha para Tony, apontando para o túnel brilhante e colorido.

Tony pensa nos pais que perdeu e imagina poder encontrá-los. Olha para a irmã, como se despedindo e começa a caminhar em direção ao túnel. Lucia, desesperada, grita com ele:

 – Não vai, Tony! Não me deixe aqui sozinha!

 – Não vou sem Lucia. É minha irmã –  parando, Tony diz, olhando para Peter Pan.

 – Venha também, Lucia. Tem lugar pra muitas crianças lá – Peter diz.

Tony dá a mão para a irmã e dão um passo em direção a entrada do túnel.

Nesse momento, ouvem um som distante, alguém batendo à porta.

 – Vamos. Não temos mais tempo. Depressa – Peter fala apressado.

-Lucia! Tony! Abram a porta – Jorge chama, do lado de fora do quarto.

Neste momento, os irmãos já estavam na entrada o túnel as cores do quarto se misturaram. Peter Pan se projetou no túnel, que se inclinou para baixo fazendo com que Tony e Lucia escorregassem nele. Parecia um gigante escorregador de arco-íris. Peter Pan voava à frente, sorrindo. Já não se via mais o quarto ou a casa.

Jorge abriu a porta do quarto com uma ferramenta e se desesperou quando viu que os filhos não estavam lá.

De repente, o túnel foi revirando para a irmã. Peter Pan abriu sua bolsa e segurou algo muito pequeno e reluzente sobre os dois irmãos, deixando cair um pó sobre eles, com o corpo coberto daquele pó reluzente, Lucia e Tony se elevaram junto de Peter, voando também, saindo do túnel para uma vista maravilhosa, deixando-os deslumbrados.

Peter pegou na mão de Tony e disse alto – segure sua irmã e não solte, pois vamos fazer uma viagem inesquecível.

Os três voavam em meio a estrelas, sois, planetas, e infinitos astros.

Tony perguntou – Como vamos chegar lá?

Peter Pan gritou – segunda estrela à direita e então direto até o amanhecer...

Após uma longa viagem, por paisagens estelares, Peter, Tony e Lucia entraram em uma nuvem esbranquiçada. Quando chegaram do outro lado, se deslumbraram com tanta beleza e coisas diferentes que nunca sequer tinham imaginado.

Voavam meio desajeitados, iniciando uma nova vida em uma terra onde quase tudo era possível. Mas não sabiam que muitos perigos também os aguardavam.

Sobrevoaram colinas esfumaçantes e árvores coloridas, animais estranhos surgiam, de repente. Aves de tom multicores voavam próximos a eles, durante um pequeno trajeto, até que chegaram na imensidão o oceano. As ondas chegavam à areia e davam enormes cambalhotas. Mas não voltavam por cima. As ondas mergulhavam na areia da praia e simplesmente sumiam.

Ao longe, um tufão girava ao contrário, numa espiral, invertida. Sobre a espiral havia uma cabana, coberta com enormes trepadeiras, que se enroscavam na espiral. Da cabana, alguém agitava a mão.

 – É o Sexto. Ele mora no tufão – diz Peter, acenando para ele, de volta.

 – Cinco já morreram lá em cima – completa Peter.

Chegaram a uma floresta com gigantes árvores. As árvores acenavam para Peter e os irmãos.

Eles se olhavam atônitos. Como pode? Se perguntavam.

Ao longe, uma queda d’água chama a atenção. Uma imensa cachoeira surgia, de frente para eles, em meio a uma grota. Peter Pan foi em direção à água. Mas ao se aproximarem mais, Lucia e Tony ficaram ainda mais surpresos. A água da cachoeira não caia para baixo, mas sim, se elevava de baixo para cima. Era uma queda d’água ao contrário,

-Venham! Vamos entrar em asa – disse Peter, se dirigindo à parte superior da água, como se fosse entrar nela. 

 – Você vai entrar na água? Não está fria? – perguntou Tony.

-É o único jeito de entrar em casa. Vamos logo – falou Peter Pan, atravessando a água que subia o penhasco, se sacudindo depois.

Tony e Lucy acompanharam Peter Pan e ficaram maravilhados pelo que encontraram do outro lado, por trás da água da cachoeira, surgia uma abertura em forma de meia lua, ornamentada de estrelas e sóis que reluziam, com vida própria.

Uma árvore de poucas folhas, de tronco azulado, enraizada na rocha, estendeu os galhos para acolher Peter e os irmãos conduzindo-os à abertura. Peter voava alegre, para a passagem. Tony e Lucia, conduzidos pelos braços da árvore azulada, entraram receosos, pela abertura, que nada mais era o que uma passagem para uma planície totalmente diferente de tudo que já haviam visto.

Peter Pan chamou-os:

– Venham! Esta é uma das muitas moradas, desta ilha. Eu a chamo de Morada das Luzes.

Havia muito para se conhecer. Tony e Lucia voaram em direção a Peter Pan que cumprimentava, alegremente as crianças que estavam espalhadas por todo os lados. No chão, nas árvores que se movimentavam pela planície ou voando próximo a eles. Era o início de uma nova vida de alegrias e sonhos infinitos. Mas precisariam lidar com a saudade de casa e dos seus pais, que ficaram presos do outro lado deste mundo encantado.

Tony e Lucia se olharam e sorriram, satisfeitos por terem feito esta escolha. Voavam de mãos dadas, descobrindo um novo mundo.


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ROMUALDO NA COPA DO MUNDO

Paula Gibbert

Santa Carmem/MT – Menção Honrosa

 

            Romualdo chegou ao hotel ao anoitecer do dia anterior ao início da Copa do mundo de 1962. Deixou sua mala e a carteira sobre o balcão no quarto relativamente grande, bem arejado, com uma sacada que dava para uma das ruas mais movimentadas do centro da cidade. Chamou-lhe a atenção a cor a roupa de cama, das cortinas e do tapete felpudo: eram em um tom de azul-claro que imitava o céu num dia de verão. Deitou-se na cama macia e cheirosa. Pretendia relaxar um pouquinho, pois a viagem de Cuiabá a Santiago havia sido demorada e cansativa.

            Estava sozinho num país estrangeiro pela primeira vez e, embora tivesse estudado um pouco a língua daquele povo, sabia que poderia enfrentar dificuldades de comunicação com eles estava um pouco apreensivo, mas a empolgação por conhecer os jogadores mais bem cotados da história do futebol mundial, o animava bastante.

            Os banheiros ficavam nos corredores, um para cada 4 quartos. Entrou naquele que ficava mais próximo ao seu. No cômodo simples, mas bem-organizado e impecavelmente limpo, aliviou-se satisfeito lavou as mãos e o rosto e deixou a água do chuveiro escorre sobre suas mãos para ver se a temperatura estava agradável. Estava. Lá fora, fazia 10 graus. Tinha visto um termômetro grande em frente ao f[hotel. Pretendia tomar banho antes que esfriasse mais ainda e descansar um pouco antes do jantar, só voltaria ao quarto para pegar os artigos de banho e roupas limpas.

            No corredor, parou para se orientar. Se tivesse lembrado de levar a chave, poderia verificar o número do quarto no chaveiro. Por um momento, não lembrou se seu quarto ficava à direita ou à esquerda, porém, os números grandes estampados nas portas o fizeram caminhar para a esquerda. Entretanto, ao abrir a porta do 220, teve um choque, pois, ele era decorado com outra cor e sua mala não estava lá.

            Sentiu uma estranha sensação, pois tinha quase certeza de que seu quarto tinha aquele número. Voltou para o corredor e percorreu-o para tentar localizar o seu quarto, pois, todos os seus pertences estavam lá.

            Andou para ambos os lados do banheiro, mas não encontrou nenhuma outra porta destrancada, começou a ficar tenso pensando em como explicaria ao pessoal da recepção do hotel, o fato de não conseguir localizar seu quarto, foi até lá e com seu espanhol meia boca expôs o caso aos funcionários do local.

            Os recepcionistas pediram que ele se identificasse para que pudessem verificar sua reserva. Romualdo explicou-lhes nervosamente que tinha deixado seus documentos sobre o balcão do quarto antes de ir ao banheiro. Em resposta, os atendentes disseram a ele que pouca coisa poderia ser feita sem um documento de identificação do suposto hóspedes daquele dia.

            Sua honestidade estava sendo posta à proa e isso o estava irritando mais e mais.

            Os recepcionistas olharam-se apreensivos, não era a primeira vez eu alguém tentava usufruir do conforto do lugar sem ter pagado a estadia com antecedência como era regra no Santiago Palace Hotel. Principalmente, numa época de Copa do Mundo, em que encontrar um quarto livre num hotel era praticamente impossível.

            Romualdo exigiu a presença do gerente para resolver o caso. Precisariam só ver qual era seu quarto que lhes mostraria seus documentos na mesma hora.

            O gerente apresentou-se e depois de um dos atendentes lhe contar o ocorrido a contragosto pegou as chaves dos apartamentos e acompanhado pelo pretenso hóspede, dirigiu-se ao quarto andar para ver qual era seu cômodo.

            Subiram pelas escadas e o gerente ia abrindo as portas uma atrás da outra. Alguns hóspedes se incomodaram com isso e o gerente explicava constrangido a situação e pedia desculpas a eles. Passaram por todos os cômodos daquele andar e nada de achar o quarto de Romualdo.

            O gerente sugeriu que o quarto o hóspede deveria se no quinto andar do hotel, porém, Romualdo insistia que sua mala estava naquele. Voltaram a abrir o 220, entretanto, nele, estava hospedado um casal de argentinos que mostrou irritação com uma segunda intromissão em seus aposentos.

            O gerente levou Romualdo ao quinto e último andar repetindo o processo de porta em porta e também ali a procura foi inútil. O mesmo aconteceu no terceiro e por fim no segundo andar.

            Ao fim dessa procura infrutífera, Romualdo foi convidado a se retira do hotel. O homem ficou enfurecido. As veias do seu pescoço estavam saltadas por causa do seu estado de nervosismo ele não sabia mais o que fazer, mas se saísse do hotel não haveria outra chance de recuperar sua mala, seus documentos e sua dignidade.

            Pediu para conversar com o guia que o havia levado para o quarto 220. Três rapazes foram chamados, porém, Romualdo não reconheceu qual deles o havia conduzido ao quarto. Descreveu-lhes sua mala que era grande e vermelha para ver se algum deles se lembrava do hóspede com um objeto dessa cor, mas de nada adiantou. Para eles, a cor desse objeto era um detalhe que não chamava mais a atenção, pois, viam malas de variados tamanhos, formatos e cores todos os dias.

            Numa última tentativa, o gerente sugeriu que ele identificasse qual recepcionista havia preenchido sua ficha quando chegara.  Olhou atentamente para cada um dos atendentes e, desesperado percebeu que nem isso ele conseguia. Os chilenos eram todos muito parecidos pensou ele irritado consigo mesmo.

            Sem ter mais o que fazer, Romualdo foi convidado a sair daquele estabelecimento. Ele disse em alto e bom som que não sairia do hotel sem seus pertences, porém o gerente o advertiu que se insistisse nisso chamaria a polícia.

            Romualdo desabou no chão em frente ao balcão da recepção. Entendeu que seu sonho de conhecer os melhores jogadores de futebol do mundo estava indo por água abaixo. Ficaria trancafiado na cadeia de um país estrangeiro sem direito a nada.

            Quando a polícia chegou, dois policiais conversaram com o gerente do hotel que os deixou a par da situação. Em seguida, dirigiram-se até onde ele estava ordenando que se levantasse.

            Derrotado, levantou-se e foi encaminhado ao camburão onde entrou sem oferecer resistência. A porta traseira do veículo foi fechada com um estrondo.

            Nesse momento, Romualdo acordou com o coração lhe saltando pela boca estava com as roupas amarfanhadas e com frio. Havia adormecido e levou alguns minutos para se dar conta de que tudo não passara de um sonho maluco. Deitou-se debaixo das cobertas e adormeceu assim que sua respiração se tornou tranquila de novo.

            O dia estava amanhecendo quando despertou e ele sorriu satisfeito ao se lembrar do sonho. Pegou seus produtos de higiene e dirigiu-se ao banheiro do corredor lembrando-se a tempo de levar a chave que tinha um chaveiro com o número 220 gravado e dourado abaixo de cinco pequenas estrelas.

            Tomaria um café da manhã reforçado e sairia em direção ao estádio onde aconteceria a abertura da copa naquela tarde. Aproveitaria para conhecer o interior do estádio passeando pelos seus corredores.

            Quem sabe, toparia com algum de seus ídolos!


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