1° LUGAR - PROSA NACIONAL - III CONCURSO LITERÁRIO "CIDADE DE OURO BRANCO"

 O CARPINTEIRO DO MAR


Maria Goretti de Freitas Oliveira

Ipatinga – MG – 1º lugar – 2010


Pouco depois das três horas da madrugada, naquela escuridão que precede o amanhecer, eles já estavam de pé. Cada um com sua bagagem, sua força e seu brilho no olhar. Todos, sem exceção, tinham aquela luz dos que pescam peixes e homens. Os momentos que antecediam a partida eram sempre inundados de risadas e falas animadas. Era um grande alvoroço na alma e no coração sem a menor pretensão de interromper o sono daqueles que ficariam em terra firme.

- Ei! Está tudo aí? A comida, os arpões? Pegaram as capas? E a caixa de primeiros socorros?

- Tudo certo, companheiro! Falta nada não.

- Então vamos com Deus e nossa Senhora. 

As embarcações investiam mar adentro e seus tripulantes acenavam com lenços brancos até quando podiam avistar seus familiares e amigos que retribuíam os acenos. Esses acontecimentos eram frequentes, mas mesmo assim, em cada despedida algumas lágrimas eram derramadas na areia branca e depois lavadas e levadas pela força das marés.

Aqueles homens fortes e destemidos passavam muitos dias no mar. A volta era sempre repleta de encantamentos, alegrias, novas bagagens, novas aprendizagens. Tudo que aprendiam ficava registrado na memória e esses conhecimentos eram de grande valia. Com o passar do tempo, iam utilizando seus saberes e, através deles, elaborando um manual de sobrevivência em alto mar, fazendo registros escritos.

Alguns pescadores, donos de pequenas embarcações, só iam à noite, amarravam as redes e, pela manhã, iam juntos arrastá-las e ver de perto o resultado do trabalho. As redes, na maioria das vezes, vinham cheias para alimentar as famílias, abastecer pequenos mercados e fazer algumas doações para os mais necessitados. Quando a rede cheia deitava na praia, uma multidão a cercava a ponto dos pescadores sentirem dificuldades para se movimentar. Delicadamente, respondendo às indagações dos curiosos, iam dando um jeito de afastá-los, conseguindo assim, mais espaço para trabalhar.

Era muito bonito observar as idas e vindas dos navegantes. Naquele lugar, acolhê-los era uma tradição. Muitos deles eram construtores de suas próprias embarcações. Era um ofício árduo, engenhos, artesanal, que exigia conhecimento técnico e artístico, mas por vezes, era realizado por pessoas simples que mal sabiam ler e escrever. Tudo que faziam era baseado nos saberes construídos  durantes anos a fio, observando e praticando a sabedoria herdada de seus ancestrais. Com números e rabiscos faziam escalas e cálculos estruturais precisos, sem nunca terem estudado. Construíam suas embarcações de modo que elas pudessem suportar as águas tortuosas do mar e as tempestades. O sistema de vedação era perfeito, sem falar na beleza, no bom gosto do colorido aplicado sobre elas. Era um trabalho lindo feito em parcerias. 

Em algumas comunidades litorâneas, ainda existem pessoas que dão continuidade aos trabalhos de seus antepassados. Nessa atividade percebe-se que cada um dá aquilo que tem de melhor. O seu Pedro, por exemplo, era um exímio pintor, então, esse toque final ficava por sua conta. Aqueles que tinham força física carregavam e montavam as peças.

Seu Vantuil era um desses. Ensinou tudo para seu filho único, o Joventino, que desde os seis anos de idade o acompanhou nos trabalhos, nas reuniões com os trabalhadores, às vezes para trabalhar, outras para se divertir. Hoje, aos quarenta anos, o filho conta suas aventuras e, também, as de seu pai.

_ Meu pai é um vencedor. Com oitenta e nove anos, esbanja saúde. Corre na praia, conversa e orienta as pessoas. Ele insiste, mas nós não permitimos mais que ele enfrente a fúria do mar. Atualmente, ele anda por aí supervisionando a construção de barcos, dando suas sábias opiniões, sugerindo, reinventando coisas, contando histórias de seu tempo e nos ensinando grandes lições. Em toda sua vida, que não deve ser chamada simplesmente de vida de pescador, ele desenhou, planejou e construiu seus próprios barcos. Por essa razão, todos o conhecem por carpinteiro do mar. Hoje, todos que tem essa profissão recebem o mesmo nome. Se alguém pergunta: - Estão indo à aldeia dos pescadores? Naturalmente respondem: - Não, estamos indo ao encontro dos carpinteiros do mar.

Muitas pessoas visitam as aldeias, conhecem o trabalho e ficam encantadas em ver a força do trabalho em equipe, as boas relações que se desenvolvem aqui, a disciplina, o comprometimento e a colaboração de todos para que tudo saia bem próximo da perfeição. Nós  nos preocupamos com a precisão dos cálculos, beleza, simetria e outros conhecimentos técnicos que nos dá a certeza de que a embarcação vai por sobre as águas sem colocar em risco a vida dos tripulantes.

Lembro-me como se fosse hoje. Vários turistas estavam nessa praia e, exatamente aqui, estavam cinco embarcações novas sendo pintadas . Eles não arredaram o pé. Esperaram que todas ficassem prontas. Cada uma mais linda que a outra. Não tinha como eleger a mais bela. Alguns arriscavam uns palpites, mas não chegavam a um consenso. Todas eram magníficas. Eu as olhava com um orgulho tão grande e pensava – elas por si só homenageiam a beleza com suas formas harmoniosas e proporções divinas.

Eu, ainda menino, fui percebendo que a beleza se difundia. Depois disso, conclui que ela para mim significava algo além de perceber o universo e que poderia estar nos olhos de quem a Vê, de quem a persegue. E, até hoje, toda vez que penso em beleza, penso também em raciocínio , na natureza toda em Deus. 

No dia em que as cinco embarcações partiram para o mar, meu pai estava entre os navegantes. Não sei por que, mas me deu um nó na garganta. Escondi entre os troncos de coqueiros e chorei. Chorei muito. Minha mãe me procurou a tarde toda pensando que eu tinha ido às escondidas. Demorei voltar para casa. Estava escondendo os olhos tristes e inchados. Não queria que minha mãe me visse naquele estado, mas ela viu. Coisas de mãe. Até hoje me emociono ao lembrar. 

Os dias foram passando lentamente. A saudade aumentava. Senti uma espécie de mal estar, uma coisa estranha e minha mãe achou aquilo muito esquisito. Havia algo de diferente no ar. De repente, o céu enegreceu. De uma hora para outra, o dia virou noite, o vento forte destelhou as casas, quebrou árvores e elevou tudo pelos ares. Nossa casa virou um charco. Não só a nossa, mas ade todos os nossos amigos. Perdemos praticamente tudo que tínhamos. E o pior de tudo é que os pescadores não voltaram.

Após três dias de busca, encontraram restos das embarcações que viraram e afundaram por causa da tempestade. Eram cinco embarcações, cada uma delas com quatro tripulantes. Acharam em alto mar quinze corpos que boiavam. Outros quatro foram devolvidos pelas ondas. Meu pai não foi encontrado. Minha mãe e eu chorávamos dia e noite. Uma vez cheguei a pensar que minhas lágrimas secariam. A dor era tão grande que elas jorravam como águas nas nascentes. Todas as noites meu travesseiro ficava encharcado.

Depois de três meses, acordei bem cedo e saí caminhando sem rumo pela praia. Quando meus pés já estavam em brasa, parei e dei conta de que deveria estar muito longe de casa. Sentei na areia e deixei o vento bater na minha face.

Nisso passou por ali um velho pescador e perguntou-me: 

- Está perdido, menino?

- Sim. Em todos os sentidos.

Contei-lhe que havia acontecido e ele disse que eu já havia andado uns trinta quilômetros. Pediu para eu voltar para casa e ajudar minha mãe a cuidar de nossas vidas. Foi aí que eu pensei: - puxa vida! Minha mãe deve estar enlouquecida. Eu sou mesmo um irresponsável. Muito cansado, deitei na areia e fiquei olhando o ir e vir das ondas. Nisso, adormeci. Quando acordei, a maré estava alta. Quando vinha, cobria-me quase por inteiro. Acordei assustado ao ver que os últimos raios de sol mostravam o entardecer. Fiquei ali paralisado, olhando o horizonte azul, quando percebi uma mão tocar o meu ombro. Estremeci. 

-Calma garoto! Não se aflija. Sou eu, o velho pescador.

Ficamos sentados lado a lado por alguns instantes, sem dizer nada. Continuei a olhar o mar e vi que ele fazia o mesmo.

De repente, longe, muito longe, avistei uma coisa colorida e pensei: - será uma prancha? 

Nessa hora, pedi ao pescador para me ajudar a olhar. A placa colorida se aproximava e demos conta de que havia uma pessoa sobre  ela. Imediatamente, o pescador pegou o barco e dirigiu-se para o local. Eu queria ir junto, mas ele não deixou. Preferiu levar consigo um companheiro seu. Tive que ficar esperando na praia. Mesmo se eu quisesse, por maior que fosse o meu esforço, eu não conseguia desviar o olhar.

Assim que conseguiram chegar perto daquela placa colorida, o pescador e seu amigo colocaram a pessoa e a placa dentro do barco e voltaram. Quando jogaram a placa na areia, reconheci logo – era parte de uma das embarcações destruídas pela tempestade. Pegaram cuidadosamente o sobrevivente do naufrágio e eu mal podia acreditar. Era o meu pai. Estava irreconhecível. Magro, machucado, desnutrido, barbudo, cabeludo e mal conseguia falar. Suas vestes estavam em farrapos. Assim que chegou à terra firme, desmaiou. Pelo desenrolar de toda história, eu sabia que era o meu pai, mas só o reconheci pela pulseira de palha que eu havia tecido e colocado em seu pulso. Ela estava intacta. Fiquei abraçado com ele, chorando durante meia hora, sem dizer uma palavra.

Daí a pouco, chegou o pescador e seu amigo trazendo umas roupas para meu pai e um caldo quente para que ele recuperasse as forças. Em seguida, arrumou um jeito de nos levar para casa. 

Quando avistamos nossa casa, pedi que meu pai chegasse primeiro para surpreender minha mãe. Ela tecia uma rede debaixo da árvore imensa, ao lado da casa. Quando o viu, gritou desesperadamente pensando se tratar de um fantasma. Foi uma correria para socorrê-la. Quando conseguiu se recompor pude contar-lhe o que acontecera. Nós dois cuidamos de meu pai e não demorou muito ele já estava recuperado. Só depois de dois dias, ele deu conta de contar sobre bravura do mar no dia da tempestade. Chorava de tristeza quando falava dos horrores vividos por ele e seus companheiros, principalmente do seu desespero ao ver cada um de seus amigos sendo tragados pelas águas. Ele lutou bravamente para salvar, pelo menos alguns, mas não conseguiu. Quando ficou só, agarrou-se a um pedaço de madeira e, já sem forças, deixou-se levar pelas ondas indo parar numa ilha deserta. Ficou lá na esperança que alguém o encontrasse, mas isso não aconteceu. Como estava impossível sobreviver na ilha pela escassez de alimentos, tomou coragem e enfrentou novamente o mar. Apoiou-se na prancha improvisada e as águas se encarregaram de devolvê-lo.

Para nossa felicidade, até hoje, ele está aqui entre nós, alegrando os nossos dias.


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